Desde 24 de Junho de 2003

O Fantasma do Natal passado

Nada será como antes. Num espaço bolorento e claustrofóbico os mortos-vivos cambaleiam de olhar vazio e nada lhes prende o olhar, excepto aquele ponto intermédio entre o nariz e o infinito. O excesso de estímulos acabou por entorpecer as fracas capacidades cognitivas que em tempos tiveram. Os imperceptíveis rugidos que lhes saem das bocas atormentam as últimas almas capazes de demonstrar ainda resquícios de consciência e livre arbítrio. Detesto a FNAC na altura do Natal…

Dentro de casa, no conforto do meu lar, barricado com porta à prova de bala com 3 fechaduras e duas cadeiras encostadas à maçaneta, sou importunado. Um vendedor da TVCabo com um boné de pai natal, aquela vizinha doida (dos 3 gatos) que parece nunca ter açúcar, dois Elders e as suas queixas do Satanás de gorro vermelho, o carteiro com as idiotas cartas do banco e os catálogos de Natal da Verbaudet e um vendedor de salsichas chamado Alfredo.

Mesmo borrifando gás lacrimogéneo pela buraco da fechadura sou importunado por SMS. Um desfile de idiotas aspirantes a cómicos, pensamentos de felicidade e unicórnios rosados, a mensagem anti-natal dos 167 gajos que querem ser únicos e originais e mais uma imensidão delas de pessoas que não conheço de lado nenhum, mas que honraram com 8 cêntimos de despesa ao seu operador.

Nada diz “Feliz Natal” como uma multidão de consumidores de ansiolíticos numa fila de hipermercado. Transportando os objectos de desejo das suas crianças para os deliciar na noite das prendas, ainda com cheiro a ódio light, daquele eme que se sorri e se pensa “Filho da Puta, gosto tanto de ti como de uma baldada de mijo nas trombas!“. Fantasiam desmembrar os tipos que estão à sua frente na fila da caixa, dissolver-lhes os ossos numa tina de ácido. Ácido metafórico, obviamente. As donas de casa aspirantes a jetset sopram em escárnio para o lado com aquela ar de puta que só uma sociopata frustada sexual consegue fazer. Os trepadores sociais, caçadores de status em busca de aprovação comunitária. A crédito, sempre a crédito.

É esta hipocrisia que alimenta a imaginação de criadores desde há várias décadas porque, convenhamos, não é preciso fazer um grande esforço para imaginar um pai natal assassino ou qualquer outra deliciosa subversão dos códigos de conduta da época. E com estas palavras de amor e esperança vos deixo, como uma imensa nuvem de beijos forrados a herpes.

3 Comments

  1. Jmn

    brilhante texto, à antiga.
    Santo Natal e que o senhor teu deus te proporcione uma epoca natalicia plena e cheia de amor..ahahah

  2. cine31

    Queria deixar aqui um comentário inteligente e engraçaralho a este excelente texto, mas o Natal comeu-me as ideias… já disse que o texto está muito bom?

  3. Pedro Pereira

    Ao ler isto lembrei-me daquele “crássico” dos Garotos Podres, “Papai Noel Filho da Puta!”.
    Época de falsidade, até apetece bloquear os canais abertos da televisão e deitar o telemóvel pela janela!
    Pois bem, neste Natal cinematográfico, entre westerns-spaghetti e blockbusters de merda como o “2012”, dei espaço ao cinema zombi italiano do Lucio Fulci – que me aquece mais o coração que o homem de barba branca!

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