Desde 24 de Junho de 2003

Escrever sobre cinema e a idade da meia crise.

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Escrever sobre cinema é uma tarefa muito ingrata e muito perigosa nos dias que correm, acaso ocorra que o escriba sofra de susceptibilidades emocionais ou de alguma classe de bipolaridade que o possa fazer deslizar para o frio vazio da amargura sentimental. Quer-se malta rija, capaz de aguentar os rigores da paneleiragem que vê filmes de smartphone em riste e no final emitem um boçal “Caganda seca” ou o eterno clássico “achei o filme parado”. No entanto, atirar opiniões ao vento acerca de cinefilia não é exclusivo do auto-entitulado crítico de cinema. A paneleiragem com smartphone em riste a ler facebook e a ver filmes também tem direito a opinar. Arriscaria que é tão grave sub-avaliar um filme de smartphone em riste como sobre-avaliar o mesmo filme com camadas de simbologia inexistente e metafísica orwelliana. É uma era chata para o cinema. Os que agora chegaram à maturidade da vida adulta enfrentam esta coisa dos filmes de maneiras diametralmente opostas. Ou vêm pela porrada, os efeitos espectaculares, as cenas de carros, a foda e as explosões-“Ai ó méne ca fixe” ou querem ser aos 22 anos especialistas de todas as áreas da cinefilia em simultâneo, devorando camiões de sugestões de listas de clássicos e assimilando opiniões por simbiose. Serve este sintético parágrafo introdutório, sempre sucinto e conciso, para dizer que tem vindo a faltar à malta do cinema  aquele descontraído cinéfilo que se diverte a ver o que gosta, que não se assusta com o que lhe falta ver e que vai involuntariamente criando uma especialização muito própria. Tem vindo a faltar também algum sentido de humor, mas aparentemente hoje em dia chama-se “palhaçada” a essa arte em desuso.

Quero com isto dizer que o com o tempo mais me apetece ver cinema e menos escrever para ele, porque é uma experiência tão pessoal e porque os leitores não aceitam quando lhe digo que os filmes que eles gostam são na realidade apáticas bostas de inerte merda. Usando outras palavras, claro. Como o moço do Público que espera que toda a gente diga que o filme é bom e sai um artigo passado uma semana que se traduz basicamente em “Quem gosta deste filme tem atraso mental acentuado e tem gostos parolos.” Horrível emprego esse, de se ver filmes por obrigação profissional e ter de se odiar o cinema. E a vida E as pessoas E o mundo. E aquele momento frio de silêncio enquanto se olha pela janela a ponderar a razão de não cometer imediatamente suicídio enquanto se espera que o microondas dê o ping de “bacalhau com natas do Lidl” pronto. De repente aquele emprego na fábrica de camisolas da tia Eunice nem parece assim tão mau.

O que precisamos mais são pessoas que nos digam o que o filme as fez sentir, que cheiros e memórias lhes invocou, que nos falem da magia que envolve o amar o cinema, que se sintam ultrajadas quando o engano os faz acreditar em filmes errados, paixão e amor à velha sala escura que tão mal tratada tem sido. Como iam de amores à altura do filme e que raio de complexo existencial os fez odiar aquele filme que afinal até se revelou bom passados uns anos. Não julgo que precisemos de mais blogs de trailers e notícias papagueadas, ou críticas de cinema que se resumem à sinopse estendida e a umas curiosidades de making of  ou à repugnante adoração pelo box office e as consequentes conclusões de que só é bom se fizer dinheiro e meta lá parolada a comer pipocas com a cara iluminada por um smartphone com a luminosidade no máximo. Não precisamos de críticos profissionais nos digam nos jornais o quão enganados estão os realizadores na sua embriónica demanda pela insularidade emocional de quem defende a origem miasmática das maleitas da alma ou dos dogmas que enfrentam as correntes proibidas da verdadeira arte esquecida de emparedar os traumas de infância em longos planos das planícies do Turquemenistão sob a aurora boreal enquanto se sai detrás de um arbusto a puxar as calças sob o atento sorriso enamorado de uma ovelha persa de cabeça preta.

Venha daí e emoção, o amor e o ódio. O fanboyismo irracional e militante. A defesa do indefensável. Coisas que se leiam com gosto, independentemente se gostamos ou não dos temas abordados, se concordamos ou não com a idiotice do escriba. Fora com a frieza académica do que “aprendi na escola e tenho que escancarar na net para saberem que sou esperto como diz a minha mãezinha“.

6 Comments

  1. CINE31

    So say we all!

  2. pedro

    So say we all.

  3. Carlos

    Sempre que me deparo com filmes que nao prestam qualquer deferencia aos canones do politicamente correcto, do bom gosto ou das normas essenciais para a convivencia em sociedade, o meu coracao acelera um pouco. Por vezes, nao sou capaz de jurar que nao se solta uma ou outra pinguita.
    Invariavelmente, nao tardam a aparecer as múltiplas variantes de “o que é que será que está a dar no outro…?”, “já escreveste o postal de anos do Arnaldo?, ou mesmo do “eh, deviamos meter a papelada do IRS em ordem, senao para o ano que vem é uma confusao”. Passo sempre alguns segundos a pensar no que é, naquilo que poderia ter sido, questiono o porque de me ter sido dada a bencao da HD-R box, vejo flares, sinto o mar tocar-me os dedos dos pés, por um canto do olho espreito a Jessica Chastain que entretanto foi enrolada por uma onda. Depois, lembro-me que existe o Cinema Xunga, o meu ritmo cardíaco volta aos intervalos tabelados como saudáveis, e ganho fé para o que há-de vir.

  4. Rui Pedro

    “E aquele momento frio de silêncio enquanto se olha pela janela a ponderar a razão de não cometer imediatamente suicídio enquanto se espera que o microondas dê o ping de “bacalhau com natas do Lidl” pronto.”. Será esta uma das melhores citações de sempre da blogosfera portuguesa? Sim, é!

  5. João

    MAI NADA.

  6. Joao Bastos

    Ora nem mais! já fui assim… de ter blog e tentar ser “imparcial” quando avaliava um filme. Fiz uma pausa na “carreira” e adoptei esse estilo de tentar escrever com o coração. Tentar ser politicamente incorrecto.. Por vezes tentar ter piada (a maioria das vezes só tem piada na minha cabeça)… e relatar experiências próprias e memórias que um filme traga… Por isso, neste momento não acho que tenha uma obrigação para com o blog. Escrevo quando me apetece e o que quero! E é isso que gosto de ler nos outros.
    Quero mais blogs pessoais… para notícias e trailers tenho o youtube e o imdb

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