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Tenho algumas (poucas) regras que sigo no que diz respeito a escrever posts no blog. Uma delas é tentar escrever textos que possam ser lidos sem ser necessário contextualizá-los temporalmente. No entanto hoje vou ter que quebrar essa regra. Hoje, dia 7 de Janeiro de 2015 aconteceram dois negros eventos relacionadas entre si que vou analisar separadamente. Um ataque a uma redação de um jornal humorístico francês provocou 12 mortes, a maior parte jornalistas e cartoonistas. Foram assassinados por pessoas que, zangadas com o mundo, julgaram ver nestes artistas a causa de todos os males da humanidade, interpretaram linearmente as suas subjectividades artísticas e as figuras de estilo caricaturais. Acharam ser o humor a pior das malevolências. Dentro das suas limitadas mentes de cepos unidimensionais terão pensado fazer o seu mundo melhor com a execução sumária destes artistas, jornalistas, cidadãos, pais de família, filhos de alguém… No seguimento desse ataque deu-se o segundo evento que marcará para sempre este dia. Um polícia imobilizado pelos disparos deste ataque jaz ferido e levanta as mãos a pedir clemência, claramente debilitado. Quase em directo, em milhares de canais de TV do mundo inteiro, um elemento das forças que ajudam a manter ordem neste mundo é chacinado com um tiro na cabeça. Sem drama, como se o atirador estivesse a fazer saltitar pedrinhas na superfície de um idílico lago nas montanhas dos Alpes Suíços, como se de uma entediante tarefa rotineira se tratasse. Ali, sob o olhar incrédulo dos cidadãos do mundo, uns a almoçar, outros a jantar, outros ainda na azáfama matinal de preparar as crianças para a escola, a mais fria crueldade colocou fim a uma vida humana. A maior violência que já vi. Não o acto em si, não a execução, não a barbárie associada a todo o conjunto. Todos nós vemos diariamente decapitações, centenas de pessoas alinhadas vivas em valas comuns para serem calmamente executadas por patifes imberbes que parecem aborrecidos por lhes terem interrompido o Grand Theft Auto V quase no último nível. O facto de ter sido apresentado naturalmente, sem grande alarido. “Imagens chocantes“, ouvimos todos os dias e estamos habituados a que seja um isco de audiência. “Ah, é verdade, agora aqui nesta cena um polícia apanha um tiro na cabeça. É melhor tapar os olhos às criancinhas.” A frieza dos média não ajudou a melhorar o dia. Senti o cérebro gelar e fiquei com aquele feedback surdo que costumamos trazer da discoteca às 7 da manhã ou dos concertos de Manowar. “Filhos da puta”, dizia um amigo no facebook. E com toda a razão.

A partir de agora os estados irão unir-se, fazer taskforces, thinktanks, jointventures, regras que irão prejudicar pessoas que não têm relacionamento com isto, uma mini-americanização da Europa, escutados todos os telefonemas, lidas todas as mensagens, escrutinado todo o tráfego internet das famílias que pouco mais que email e preencher o IRS fazem. Um investimento brutal no upgrade do já de si Big Brother. Eu nem me importo de abdicar de algumas liberdades para que os meus filhos, a minha família, os meus amigos, as pessoas que nem sequer conheço mas que decerto merecem tanto como os que amo, tenham segurança. Só que temo o pior. Certamente que um dia a poeira irá baixar e a máquina que tudo cheira nunca cessará de funcionar. Este ano procura terroristas, para o próximo escuta esposas infiéis e ministros corruptos e pouco faltará para que as multinacionais manipulem os poderes para multar e prender os miúdos de 16 anos que usam torrents ou que sacam discos dos Coldplay sem pagar o preço pornográfico que lhes pedem. Espero que não seja este o nosso futuro, que o medo não sirva para nos impor um regime Orwelliano ou o fundamentalismo moral das multinacionais disfarçadas de estado.

E com isto vos trago este filme, uma bela comédia que vi ontem. Um paródia sob a forma de falso documentário, o tal mockumentary, ao estilo do saudoso This is Spinal Tap. Uma equipa segue a vida de 4 vampiros que vivem na Nova Zelândia. Pessoas normais, com os mesmos problemas que nós. Lavar a louça, arrumar a casa, pagar as contas, tentar encontrar o amor. Coisas já de si complicadas para meros mortais, agora imaginem isto a evitar alhos e crucifixos, correr o risco de ser esturricado pela luz solar, assassinado no sono por um Van Helsing dos tempos modernos ou ver envelhecer os entes queridos. Fez-me lembrar aquela horrível série de vampiros True Blood, mas na vida real onde as pessoas não passam a vida a copular a velocidades supersónicas, a vestir constantemente roupa de design e a ter o penteado sempre alinhado mas sim a sofrer as arreliações da realidade. Coisas como receber cartas do IMI ou pisar merda de cão.

O filme chega-nos sob a bandeira da equipa do Flight of the Conchords e é fruto de quase uma década de desenvolvimento. Muito bem feito, estilizado, hiper realista nas performances, belos cenários, terna decadência e acima de tudo um filme tremendamente hilariante. Será para mim um dos filmes do ano. E olhem que 2014 saiu-se um belo ano de cinema depois daquelas banhadas todas da Marvel e dos blockbusters merdosos deste Verão.

É um produto coeso que resistirá aos tempos e acredito que se faça culto. Só espero que não se transforme num género cinematográfico e em breve nos atirem duas vezes por mês mockumentaries com lobisomens, zombies, magos, robots maléficos, bruxas más, gnomos, madrastas extraterrestres ou padeiros cuja dupla vida os leva a performances travesti em bares de alterne de Atlantis.

Ainda voltando ao assunto inicial, tenho reparado que o humor tem vindo a ser muito maltratado. As pessoas já não o apreciam com antes. Quer dizer, apreciam mas nas vertentes Hangover, comédias românticas com a Cameron Diaz em cuecas, em sitcoms plastificados ou o Nilton. Enfim, aquilo que o poderio mercantil americano nos enfia pelas goelas abaixo. Ou o que o Nilton paga ao facebook para lhe trazer likes. O humor mais audaz e arriscado já não encontra seguidores, as pessoas não lhe acham piada, acham patetice tudo o que não possa ser linearmente interpretado ou que caiba num template de piada que vejam diariamente em horário nobre. Tenho tanta pena que assim seja. Este filme teria sido muito mais feliz em termos de popularidade ali entre 1983 e 1998. Antes que os qualquercoisa Movie tivessem arrasado de vez com o género da paródia, transformando um género que já foi nobre às mãos de Mel Brooks ou pelos irmãos Zucker numa zurrapa indescritível que não deixo sequer ver ao meu cão.

Desculpem o ar algo lugubre deste post que merecia uma celebração calendoscópica de galhofa explosiva e multidimensional, mas o dia não deu para mais. Decerto que não estarei sozinho nisto. Ainda por cima somos 5 cá em casa e eu sou o único que não tem ainda nacionalidade francesa. Talvez porque o meu gosto pela baguete precise de ser refinado ou porque uma vez me chateei com um pasteleiro parisiense por ele não compreender o meu amor pelo aveludado paladar do croissant misto. Para ele era heresia meter sabores salgados num croissant fofo de manteiga. Para mim é religião. Talvez um dia me faça francês porque afinal hoje somos todos Charlie.

Je-suis-Charlie