Whiplash-Scream

Nos meus tempos de jovem descomprometido e de ir para onde o vento sopra fui baterista e tive algumas bandas, não necessariamente por esta ordem. Eram tempos de grande azáfama, nos anos 90 centenas de pequenos bares e clubes competiam entre si para ter bandas ao vivo que era isso que a malta gostava. Viver um centésimo do que se vivia na latejante noite de Seattle. Eu não era do tipo rockstar, pelo contrário. Era aquele baterista soturno e cabeludo que servia de técnico de som, transporta caixas e tratava de minimizar os estragos porque as condições nunca eram as prometidas. Isto enquanto o vocalista aproveitava a carrinha vazia para brincar ao esconde o martelo com duas noviças inebriadas facilmente impressionáveis. Entretanto abandonei por razões profissionais, mas o que vivi marcou-me para sempre. O músico que quer ter carreira é uma pessoa obcecada. Alguém que quer chegar ao topo da sua área. Mesmo o facto de saber de antemão que nunca o conseguirá não o irá demover de tentar. Os músicos mais empenhados tornam-se assim em ermitas num estado de quase permanente autismo. A música é a única coisa. É o caminho, a vida e o amor. Melhorar, ser melhor, ser o melhor, progresso diário. Anos depois de abandonar a arte percebi que podes largar a bateria mas a bateria nunca te larga a ti. Um baterista, ou um baixista e percussionista, vive em ritmo. Tudo tem um ritmo e é a ele que obedece. Procura padrões, está em estado de permanente batuque, seja com lápis, dedos, pés, seja em reuniões com a administração, funerais, em conversas que deviam estar a prestar atenção. É uma maldição.

Quando vamos a um festival de tunas há sempre uma ou outra que tem um amigo que não toca nem canta. Mas como gosta do ambiente é de malhar canecos com os comparsas eles metem-no no bombo. Existe esta ideia errada de que tocar bombo ou ferrinhos é aquela tarefa que se pode dar a quem não sabe mais nada. Essas pessoas costumam ser desprovidas de ritmo, mesmo sóbrias. O sentido de ritmo pode-se ajustar, melhorar, refinar, mas não se pode criar de raiz. As pessoas ou nascem ou não nascem com ele. Como o sentido de afinação. Não vale a pena batalhar muito nesta questão. Ora, esses bêbedos no bombo nas tunas rapidamente começam a acelerar ou a abrandar o ritmo. Ou ambos numa onda completamente irregular. O pânico instala-se entre os músicos. Quando estou a ouvir essas pessoas começa a ter suores frios. A desafinação ainda se aguenta dolorosamente. A falta de ritmo não. Depois dos suores frios e das sucessão calor/frio/calor vem aquela sensação de que um serrote ferrugento está a acabar de trespassar o crânio a caminho do cerebelo e até sinto sangue e pedaços de material de cérebro a escorrer pelas têmporas. Cada vez que o bombo sai fora do ritmo é um músculo que atrofia, e depois outro. Espasmos violentos percorrem-me o corpo até me sentir deformar numa bola de carne senciente, num celeiro em chamas, rodeado de animais calcinados e os cavalos ainda a correr em chamas e com as patas traseiras esmagadas por uma marreta. No primeiro andar um grupo de órfãos amarrados grita ao perceber que o chão irá desabar e fazê-los cair numa piscina de ácido também ele em chamas enquanto dois palhaços assassinos degolam um Noddy e lhes explicam que não existe Pai Natal, que são os pais que metem lá as prendas e que o mais provável é para ano receberem só roupa e em adultos perderem a esperança de receber outra coisa que não sejam meias ou cuecas. O espaço a implodir e a esmagar tudo contra o meu cérebro e passado um bocado haver só uma luz branca num silêncio ensurdecedor uma velhinha numa cozinha a fazer uma tarte bem cheirosa. E a velhinha vira-se para mim e a sua cara é o Skelettor do He-Man. E aí a luz apaga-se e tudo fica preto. Grito, mas não me sai som. Só limalha de ferro. Isto é falta de ritmo.

Quanto ao filme gostei muito, o meu segundo preferido do ano que passou.

ADENDA: Whiplash ganhou 3 Oscares, 3 merecidos Oscars. Sei bem que os Oscars são apenas um artefacto de Hollywood para promover os filmes de Inverno e que é mais um festival de carne e roupa do que cinema. No entanto não somos imunes, é como ir ver a final da Taça de Portugal, campeonato de futebol ou wrestling, apesar de estar tudo combinado de antemão, nós temos sempre preferências. Whiplash ganhou aqui que seria seu desde que foi anunciado. Melhor actor secundári0, porque J.K. Simmons foi fodidão como um sargento Hartman no Fame. “Mais rápido, mais rápido”, “chamas a isto um ritmo?”, se pudesse atravessava o ecrã para ajudar o rapaz. Acabei o filme encharcado em suor e aliviado por ter acabado a pressão. Durante uns tempos pensava nele diariamente. Flashbacks emocionais, pressão, “o que estás a fazer com a tua vida? mais vale seres padeiro do que baterista.”, etc. Perseguiu-me psicologicamente, como um leve trauma que não faz mal nenhum mas também demora a passar. Que filmes fazem isto? Este fez isso e só por isto é um filme notável. E eu vejo praticamente um filme por dia, tentando evitar filmes maus porque o tempo de jovem já não o tenho.

Melhor montagem, sim. Definitivamente. Já pensaram na complexidade que é sincronizar todas aquelas imagens, provavelmente filmadas só com uma câmara (não faço ideia), com aqueles ritmos maléficos, hipersónicos de precisão milimétrica? Muito complicado. Fazê-lo com estilo, então, é elevar a fasquia ao cubo. E assim foi feito, magistralmente. Com Oscar ou sem Oscar, venha de cá esse abraço.

E por aí fora. Bem, tudo isto para lhes dar os parabéns. Melhor que isto só o SMS da Julianne Moore às 5 da manhã a agradecer tudo o que fiz por ela e que naquela cena final do Maps to the Stars, no banco de trás da limusine com o Robert Pattinson, só pensava em mim.

Deixo ficar o poster do Brain Mixer.

whiplash_peq

Tirado daqui: http://brain-mixer.blogspot.pt/

NOTA: Este texto, até à ADENDA, foi copiado do post anterior dos melhores filmes de 2014.