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Tenho um amigo de infância que bifurcou ali no início da vida adulta para uma religião que fez dele um gajo um bocado demente. Continuou o mesmo, mas as doutrinas religiosas carregaram-no de culpa e de falta de auto-estima. O gajo bebia uns copos, fumava um fininho ou via uma jeitosa de bela padiola que lhe causava tesão e ficava todo complexado. Tinha falhado em relação aos seus votos. Um homem de religião que abominava a ciência, que seria o nosso fim. Coisas que dizia mas que não devia acreditar. Ora, um dia arranjou uma namorada. Eram um casal normal. Fodiam contra as regras da igreja e ele foi-se habituando ao peso do pecado. Apanhei-o na praia com ela. A gaja não era má, mas saiam-lhe pintelhos pelo lado das cuecas do bikini. Falei-lhe nisso e ele respondeu-me que ela tinha uma anatomia vaginal muito complexa, que não havia maneira de lhe aprumar o arame farpado sem lhe arrancar uma febra conal. Calei-me, porque um homem não comenta abertamente a febra conal da namorada do amigo. Largos meses depois voltei a cruzar-me com ele e pareceu-me diferente. No decorrer de um daqueles quentes momentos de meter a conversa em dia revelou-se a favor da ciência e da tecnologia, que havia coisas que o andavam a cegar. Que tinha decidido ser menos radical. A namorada teria ido a uma daquelas depiladores laser que lhe rapou a cona toda, estilo menina de 8 anos, e o gajo até chorou nessa noite. Um milagre da ciência que o fez ver a luz, neste caso uma luz pulsada muito concentrada sob a forma de laser inteligente que arranca pintelhos.

E é a luz que se vê neste regresso dos irmãos Coen, a luz a 24 impulsos por segundo projectados num ecrâ branco. O cinema é a religião e o filme é uma viagem de fé, a teste de fé que o personagem interpretado por Josh Brolin terá que fazer para provar o seu amor pela sétima arte.

Hail Caeser não é bem uma história, não tem um arco narrativo convencional. É uma viagem, uma carta de amor dos Coens a um tempo que vive nas nossas memórias colectivas. Um tempo glamoroso e opulento, distorcido pela influência da cultura popular nos parcos fragmentos que possam representar qualquer coisa de facto histórico. É também uma comédia, um humor muito especial que vem sendo cozinhado e apurado há largos anos por estes Chefs do celulóide.

Porque é de celulóide que se trata, não de digital. E que bonito filme este, a fazer justiça aos tempos do technicolor, aos tempos do overkill estético, das cores primárias que feriam os olhos de tanta intensidade. Set após set, o nosso herói revisita referências reconhecíveis para nos mostrar aquilo que seria um ambiente de estúdio.

Ora, o fio condutor desta visita de estudo aos tempos áureos dos grandes estúdios é Eddie Mannix (Brolin), um homem que se ocupa de resolver problemas para garantir que as produções cheguem a bom porto. Católico praticante, Mannix vai passar 24 horas neste filme a ser testado na sua fé. Não na fé católica, da qual nunca descarrila, mas na fé na industria do cinema. Um tentador satanás da indústria da aviação tenta captar o seu talento para outros vôos, com proposta melhor em tudo. Mais tempo com a família, mais dinheiro, reforma antecipada, ambientes calmos e relaxantes. Esse satanás da aviação fala-lhe da falta de alma que tem o cinema, que é uma actividade comercial obscena e vetada à extinção.

Com estas decisões a pender por cima da sua cabeça como um cofre do Will E. Coyote sobre o Roadrunner, Mannix resolve dezenas de problemas, imerso num infinito caos. E no fim decide e o amor, como sempre, sai vencedor.

Não diria tratar-se do melhor filme dos Coen, mas é bem decente e acima do lixo que nos despejam semanalmente nas salas. Tecnicamente irrepreensível e com aqueles timings sempre afiados destes manos.

De notar uma impressionante galeria de actores que representam quadros ligeiramente bidimensionais do grande esquemas dos estúdios e do grande Dolph Lundgren que tinha um belo papel mas foi cortado. Só aparece a sua nobre silhueta.

E no final temos a lição de todas as lições que devemos tirar em cinema, sob a forma de um ensaio de bofetão dado a George Clooney, que apenas o cinema é a dádiva da luz não é a política, nem as fofocas, nem o star system, nem o box office, nem o cgi, nem o mercantilismo dos remakes, nem confortável vaca dourada dos universos cinemáticos, nem as artimanhas manhosas do 3D/4D, nem as pipocas, nem a publicidade da Pepsi, nem o caralho do gajo que atende a chamada e tenta convencer a namorada que está em casa a estudar e por isso é que não pode estar com ela. “Film is truth 24 times a second, and every cut is a lie.”