O último fim de semana de Novembro de 1994 foi o normal para a época. Tinha uma namorada nova que partilhava comigo os prazeres da cultura e de ver o nascer do sol nas janelas embaciadas pelo ofegante bafejar do desejo e do êxtase sensorial da descoberta. Sábado à noite, jantar no chinês. A comida misteriosa que aprisiona a cidade com o seu apelo exótico, pedida em números. O procedimento repetia-se. Jantar, café, cinema, barzinho, discoteca e ver nascer o sol nas condições supracitadas. Nesse fim de semana fomos ver o Pulp Fiction. Pulp quê? Não interessa, só estão 3 filmes em sala e os outros dois já os vimos.

Calculada mal a viagem, ainda perdi tempo a estacionar e chegámos atrasados ao cinema. Não foi um atraso muito significativo. Ainda assim é algo que detesto. Numa época em que não havia publicidade e os trailers eram opcionais, dependendo da duração do filmes e dos respetivos slots para o dia, ninguém podia prever se o filme ia ou não começar a horas. Chegar ao cinema atrasado nestes tempos era embaraçoso, tinha que ir um senhor com uma lanterninha para nos acompanhar ao lugar. Toda a gente reclamava porque estavam bem sentados e tinham que se levantar. Além de apanhar com a luz na cara. O entrar do senhor da lanterninha era sempre acompanhado de alguma azáfama, a malta a esconder os chocolates e as bebidas, proibidas completamente de entrar em sala. Afinal isto é para ver cinema, não é para mastigar. Os lugares eram menos espaçosos que agora e bastava que alguém deixasse crescer um pouco a carapinha para estragar a vista a quem ficava no banco de trás.

A malta senta-se e o filme já vai em piloto automático com um andamento do caraças. Que raio se passou aqui? Como perdi eu tanto tempo de filme se estou só uns minutos atrasados. Passado um bocado mais um corte esquisito e um salto para outra cena não relacionada. “Ora merda, mas isto é o quê?”. O filme parece estar a desenrolar-se em direcção a uma conclusão. “Tanta coisa aberta, caraças!”. E no final tem mais uma cena e outros elementos que o complementam. De modo satisfatório e temperado com um delicioso anacronismo a fazer lembrar os jumpcuts aceleradores de Godard, cujo função prática e desenrascatória seria rapidamente elevada ao estatuto de arte.

E fui assim introduzido a Quentin Tarantino. Não consigo agora, velho e cansado, identificar se terei visto Reservoir Dogs antes ou depois. Não os etiquetei, como fazemos hoje, como “Filmes de Tarantino”. Eram só dois e ainda não tinha grande expressão. O tempo virou o bico a esse prego e Pulp Fiction haveria de fazer um glorioso percurso de bilheteira, elevando Tarantino à primeira divisão da realização (já tinha sido o filho amado de Cannes nesse ano), criou meia dúzia de actores icon/fetish, puxou John Travolta dos pântanos fétidos do esquecimento e criou uma nova raça de cinema alternativo, elevado a mainstream com o poder do seu sucesso.

O que se estranhou e depois entranhou neste estilo Tarantinesco de cinema foram os diálogos desnecessários e as cenas longas e excessivas. O que poderia parecer algo parvo e ilógico passou a imagem de marca deste e de outros cinemas. Nos filmes que Hollywood escarra para as nossas salas, todos os diálogos necessitam de ser premonitórios ou essenciais para a trama. Todas as cenas têm que fornecer pistas para o desenrolar. Neste Pulp Fiction os diálogos são os da vida real, as pessoas a ter as suas conversas que não precisam de ter peso na narrativa. As cenas não são cortadas à perfeição para apontar ao punchline. São o tempo que é preciso gastar para fazer as coisas. Com silêncios desconfortáveis, abordados pelo John Travolta e Uma Thurman, com momentos de tédio ou demasiada excitação. Sem o equilíbrio castrador da lógica Hollywoodiana. A adicionar a isto tudo, ainda tinha a nossa tão Parisiense Maria de Medeiros a passear-se com Bruce Willis numa mota. Perdão, numa chopper.

E assim nasceu esta paixão por Tarantino, naquele que é o seu melhor filme. O que encerra em si o tão famosa “Fórmula Tarantino” ou “Essência Tarantino” ou lá como lhe queiram chamar.

Falaremos do novo Once Upon a Time in Hollywood no próximo episódio. Até lá não vos doam os dentes.