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Machete (2010)

Chega ao fim mais um ano. Na minha lista de rascunhos procurei algo que estivesse pendurado injustamente. Pesco este Machete que mantive em banho maria por demasiado tempo. Não posso dizer que Machete seja a minha paixoneta cinematográfica do ano porque sou uma pessoa com grande dificuldade em demonstrar entusiasmo ou qualquer estado emocional que requeira algum nível de euforia. Mas que Machete foi um belo filme de 2010, isso não podemos negar. Não será certamente uma mensagem inspiradora que possa criar benevolência e ondas universais de filantropia. Não. É apenas divertimento no seu estado mais puro. Mas atenção, não é divertimento para todos, é para quem o conseguir inserir no seu lugar. E também é o uso mais divertido de um intestino humano desde o Braindead de Peter Jackson em 1992 ou as filmagens de Tomás Taveira em 1989.

Para que se possa compreender Machete deve-se compreender primeiro o conceito de Grindhouse. Acho que já tinha abordado este assunto algumas vezes antes, mas na época de Internet em que toda a gente tem memória de passarinho nunca é demais realçar as coisas que queremos ver bem elucidadas. Ora portanto Grindhouse. Grindhouse é um termo impossível de compreender para um português ou outro qualquer habitante de um país fora dos Estados Unidos. Mas felizmente temos em Portugal a nossa própria versão de Grindhouse. Nos anos 80 e inícios dos anos 90 a indústria de distribuição de cinema era diferente do que é hoje. Havia dois tipos de salas de cinema. A primeira divisão, onde passavam as estreias e os filmes mais mainstream. Depois havia a segunda divisão que englobava as salas mais pequenas com filmes série B ou filmes mainstream com mais de 6 meses, as salas de bairro, o cinema itinerante de aldeia e as míticas salas de praia que ainda hoje persistem nalguns locais do país. Essa segunda divisão é o nosso Grindhouse. Normalmente sessão duplas, filmes que só eram exibidos um dia ou dois, cópias cortadas e mal tratadas, erros de projecção, cinematografias menos mediáticas, violência, terror e a sempre omnipresente pornografia depois da meia noite.

É numa homenagem ao contexto descrito anteriormente que devemos ver Machete. Os elementos são desse tipo de cinema, os deliciosos detalhes copiados fielmente. Não se pode dizer que seja grande surpresa porque quem viu Planet Terror sabe que se há um mestre deste tipo de cinema, esse mestre é Robert Rodriguez. A fotografia, os planos, os clichés, as desnecessidades da violência gratuita, os goofs, os plot holes, o exagero, a preguiça narrativa contornada com acrobacias absurdas, sexo em barda de modo perfeitamente aleatório… Não falta nada aqui.

Quando o filme acaba e pensamos objectivamente no que acabamos de presenciar é impossível não pensar algo do género “Como é que se consegue condensar tamanha quantidade de actores famosos, secundários de peso, argumento multithread em pouco mais de 90 minutos?“. E de tal intensidade, fluxo de informação e passo acelerado que duas ou três visualizações extra não fazem mal a ninguém, com a vantagem de se descobrirem detalhes a cada vez que se (re-)vê. Danny Trejo vê-se assim, de repente, transformado num action hero de referência, num icon sexual do novo milénio e vem provar que quando é preciso matar e copular em larga escala sem perder de vista o objectivo da missão é necessário bem mais que uma carinha laroca.

A galeria de actores é de uma beleza quase surreal. Não apenas na quantidade de nomes sonantes como no tipo de papel atípico que desempenham sob a batuta de Rodriguez (Eu também não gosto da metáfora da batuta, mas não me ocorreu mais nada que, sorry. Estão à vontade para destilar veneno nos comentários). Robert De Niro, irreconhecível político redneck vira-casacas com elevado instinto de sobrevivência. Jessica Alba, pouco mais que um belo rabo, cara laroca e uma boquinha marota, não me parece que tenha sido o casting ideal, mas como se trata de Grindhouse, passa… Steven Seagal, o mais denso cepo unidimensional no seu primeiro papel de bad guy. Priceless. Eu adorei-o pela primeira vez na vida. Aliás, deve ser o único filme com ele que vi mais de 3 minutos. Michelle Rodriguez como sempre muito bem no papel de bela musa da ultra-violência. Nem com um olho a menos perde piada. Ainda há lugar para Lindsay Lohan a fazer de si própria, Don Johnson também irreconhecível no papel de pulha genérico e toda uma gama de secundários de respeito.

É também interessante este aspecto de  dualidade absoluta dos personagens. Ou são bons e justos ou demoníacos. Mais ou menos com num episódio de Knight Rider ou McGyver. Não há espaço para tons de cinzento no universo sangrento de massacre. Nas sábias palavras de Yoda “Do or do not, there is no try!”.

Concluindo que já se faz tarde, devo dizer que não estamos perante uma evolução no cinema moderno. Não estamos perante a nova “Next Big Thing” de Hollywood. Clássico instantâneo. Estamos perante um filme que é imensamente divertido e que para ser consumido em toda a sua glória teria que ser visto no cinema da Praia de Monte Gordo a meio do mês de Agosto ou, em alternativa, numa cópia de uma cópia em VHS, com fotocópia da capa a preto e branco (modo econofast). Ou Beta. Beta não era mal.

Bom 2011 para todos e que, no mínimo, não vejamos a nossa vida a andar para trás. Amo-vos a todos como irmãos. E não falo daqueles irmãos que o meu pai deixou no ultramar e que nunca conheci, mas sim de irmãos verdadeiros que nos fazem a vida um pouco mais colorida. Não colorido no sentido gay da expressão, mas no sentido de ajuste de saturação de um TV ou um monitor descalibrado.

10 Comments

  1. cine31

    Ah, Taveira esse pioneiro incompreendido e esquecido! Merece um artigo sumarento!
    Na linguagem dos putos: <3 CinemaXunga
    Boas entradas em 2011 😉

  2. Eduardo

    É por esta prosa que és quase o único opinador de cinema que eu leio. Não precisas que um filme te massage o cerebelo, ou que te inspire a criar novas ferramentas ontológicas que decifrem o significado absoluto da essência metafísica da alma humana. E é assim que os filmes devem ser vistos.
    Estamos exatamente na mesma frequência no que diz respeito ao Steven Seagal. Nem em puto eu conseguia ver um filme dele todo. Mas neste filme só tenho uma coisa a dizer: puñeta!

  3. bruno

    Até me vieram as lágrimas aos olhos naquele último parágrafo :’)
    Epah convenceste-me, vou guardar este blog nos preferidos do browser.
    Por acaso o filme está muita porreiro, só não gostei do fim, aquele paleio para juntar os mexicanos todos…
    Preferia um fim à “schwarzenegger”, que o gajo entra-se por ali a dentro sozinho de catana na mão.
    Mas pronto…

  4. Pedro Pereira

    Gostei muito. Quase me senti a voltar ao passado quando assistia religiosamente a este tipo de filmes nas sessões de cinema do Canal Sur. Os que vivem aí para os litorais não tiveram o privilégio de seguir este excelente canal regional andaluz que nos anos 90 emitia grandes “crássicos” do cinema de porrada, terror e porno. A vida era boa…

  5. pedro

    Caro amigo Pedro Pereira, deixa-me que te diga que no final dos anos 80 e início dos anos 90 eu morava em Monte Gordo, a 3 singelos Kms da fronteira. Havia até a famosa piada do Ba-Canal Sur! Outra característica dos anos 80 era o famoso emissor de TV que as câmaras municipais tinham para oferecer um canalzinho de satelite (pirata) aos munícipes que morassem ali à volta.

  6. Pedro Pereira

    Então sabes do que falo! Um mimo…

  7. cinemapongal

    Também nunca consegui ver um filme do Seagal até ao fim. Aliás, o máximo de tempo que perdi com uma dessas bodegas foi 5 minutos numa aula de Francês no 9º ano. A professora teve a ideia de pedir aos alunos que trouxessem cassetes de vídeo com filmes em francês que tivessem em casa, para visionamento da turma. Ora bem, só um aluno apareceu no dia combinado com uma cassete, e era um filme do Seagal dobrado em francês… A sessão durou apenas cinco minutos porque a professora cancelou a iniciativa mal o labrego de rabo-de-cavalo à fdp começou a distribuir porrada e a partir tacos de snooker nas fuças dos mauzões enquanto estes grunhiam coisas como “fils de pute” e “tu as brisé mon nez!”

  8. Eduardo

    “A sessão durou apenas cinco minutos porque a professora cancelou a iniciativa mal o labrego de rabo-de-cavalo à fdp começou a distribuir porrada e a partir tacos de snooker nas fuças dos mauzões enquanto estes grunhiam coisas como “fils de pute” e “tu as brisé mon nez!””
    AHAHAHAH!! Ah…, as coisas boas da vida!

  9. Miguel Coelho

    Este filme é simplesmente fenomenal!
    Não aconselhado a fracos de coração. eheh

  10. VB

    Para destoar deste coro de elogios, tenho a dizer que esperava mais deste filme. Não, não me estou a queixar da violência gratuíta, enredo badalhoco e twists metidos “a martelo”, estava aliás a contar com isso mesmo.
    A única representação que sai do lote mau/medíocre é a do Don Johnson. Seagal, Trejo, Alba e até o próprio De Niro são uma completa nulidade. O enredo é um Punisher-com-catana (quando se usa o Punisher como base de comparação algo está tremendamente errado..).

    O bom: A crítica à hipocrisia americana

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