Abel Ferrara

A história que vos vou contar pauta-se pela verdade, daí haver um ou outro pormenor mundano que vos possa enfadar. A realidade é assim, sem efeitos especiais nem jumpcuts. Eram 5 da tarde e deslocava-me no Metro Mondego em direção à estação dos Hospitais da Universidade de Coimbra, aquela com ligação ao TGV e os 5 parques subterrâneos climatizados a Hélio 21 Oxidoplasmático. Um roliço trintão de  chapéu de feltro (vulgo Fedora) falava de cinema a duas caloiras de Enfermagem cujos seios pareciam tentar escapar por cima a uma indumentária 2 números abaixo, tops de licra apertados capazes de provocar  paralisia respiratória a um possante equídeo. O rapaz concluía o seu raciocínio “… e esse senhor é o Tim Burton!”. As raparigas jaziam deslumbradas e a mais loura disse “Adoro o Tim Burton, Alice no país das maravilhas é um dos meus filmes de infância preferidos.” O rapaz do Fedora sorriu complacentemente e retorquiu em modo guru. “Não miúda, não é esse filme que estou a falar, é outro, um clássico, dos primeiros da sua carreira. O Planeta dos Macacos.” Arregalei os olhos acima do meu escalpe e pensei “Caralhos te fodam, atrasado do caralho. Pregar-te os colhões à linha do comboio era pouco”. Virei o olhar para a janela no momento exacto que passávamos pelo glorioso túnel de Celas adornado com a arte retroiluminada de Garth Ennis. Enquanto me sentia superior cheguei à triste conclusão que há realizadores que gosto mas conheço pouco da sua fase inicial da carreira, como o Abel Ferrara (por exemplo). Não me deixei, porém, abater por esse excesso de realidade e voltei às minhas fantasias de  superioridade moral, essa sensação que os mantém afastados do suicídio. O desdém para com aquele miserável ajudou a equilibrar as minhas directrizes de vida e a elaborar um rápido top 5 de Abel Ferrara da fase  que melhor conheço.

É certo que ainda esta semana queria ver o 4:44 Last Day on Earth e o Fear City, mas desde quando é que um estudo incompleto se meteu no caminho de boa ciência? Se aquele badocha fedorento sacou duas caloiras de enfermagem barely legal, provavelmente, em simultâneo, porque não posso eu fazer uma lista definitiva com dados incompletos?

5. Ms. 45 (1981)

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Uma jovem muda, tímida e bastante atraente, é violada duas vezes seguidas no mesmo dia ao ir para casa depois de um cansativo dia de trabalho. É um azar desgraçado, mesmo para uma cidade violente. Farta da opressão masculina que teima em lhe friccionar os entrefolhos sem pedir autorização, decide por um estilo de vida vigilante, saindo de noite com uma arma que envergonharia o próprio Harry Calahan a despachar malandrins como bucho de ovelha em noite de S. Isidro.  É um filme rápido, que escala para os limites do “fora de controle” num ápice e espelha bem a insegurança nas grandes cidades americanas nos finais dos anos 70, inicios dos anos 80. Antes do governo lhes começar a meter merdas na comida que os faz gordos que nem maços. É, de um ponto de vista puramente estatístico, o filme mais apreciado de Ferrara

4. The Funeral (1996)

funeral

Ferrara fez um trilogia não assumida que termina com este The Funeral. A premissa é simples: o irmão mais novo de uma família de gangsters é assassinado. O amado delfim. Artista, sensível e com suficiente capacidade emocional para alterar o submundo dos brutamontes à bofetada. Durante o filme o magnânimo Christopher Walken, muito presente na obra de Ferrara, procura o assassino antes do corpo ir para a terra de modo a que possa ter paz. Excelente realização, actores de topo no pináculo da sua carreira a serem competentes e uma linha narrativa que não envereda por onde pensamos ir e que nos surpreende com as reviravoltas que só um morto pode provocar. Chris Penn, que já não faz parte deste plano etéreo, a ofuscar Walken numa performance de psico-depressivo-bipolar bad motherfucker de impressionar o mais tijolão entre nós.

3. Bad Lieutenant (1992)

Bad Lieutenant

Bad Lieutenant  é um dos melhores filmes americanos dos últimos 25 anos. E está em terceiro nesta lista. Harvey Keitel interpreta genialmente um polícia viciado em jogo e drogas, com avultadas dívidas aos tubarões da área que ameaçam cortar-lhe a genitália rente se este não pagar o que deve. Uma freira é violentamente violada e assassinada e o tenente tenta usar o caso para se redimir dos seus pecados, das maneiras mais erradas possíveis. Num mundo onde o bem e o mal são apenas nuances do mesmo assunto, são opções que fazemos diariamente para garantir a sobrevivência, são variáveis na equação da evolução natural. Um filme forte, alucinogénico, herege, violento, cru, visceral e onde a pilinha de Keitel assume especial protagonismo.

2. King of New York (1990)

kingofnewyork

Este é o primeiro filme da tal trilogia não assumida do bem e do mal, sendo Bad Lieutenant o segundo, e o meu preferido. Christopher Walker é um gangster acabado de sair da prisão e que controla a cidade de Nova Iorque num esquema de Robin do Bosques pós-moderno. Aniquilar a concorrência no negócio das drogas na maior cidade do mundo (em pib de narcóticos em 1990) é uma tarefa complexa e que lhe leva bastante em troca. Uma das razões porque amo este filme é porque nos faz acreditar que fazer um filme é fácil. Arranjar uns actores, uma câmara, meter os gajos a andar na cidade, no metro, em refeições e salas de jogo, na rua, com luz natural, hiper-realismo, uma empatia sem fim. É apenas uma ilusão porque nesta fórmula falta o génio de Ferrara que é tão só e apenas a cola que tudo une.

1. The Addiction (1995)

theaddiction

Um dos meus filmes preferidos, The Addiction é um curto filme de vampiros que lida com o vício e o controlo do impulso de matar. Uma jovem é atacada por uma jeitosa a meio da noite numa rua escura. Chega a casa com uma dentada profunda no pescoço e aos poucos percebe que as coisas mudaram. A sintomática vampírica vai-se revelando e ela tem que aprender a lidar com o vício do sangue. Tenta manter a sua personalidade mas rapidamente a sua repulsa por humanos acaba por vencer.

Não é por ser um filme de vampiros ou sequer por ser um filme sobre dependência que gosto dele, mas pela vertente filosófica e a explicação sobre a existência dos grandes pensadores da História da humanidade, a sua visão sobre a imortalidade, a inevitabilidade da mudança, a futilidade da resistência e a nossa evolução enquanto indivíduos (mesmo que nos tornemos em algo que sempre abominámos). Filmado em preto e branco, mais preto do que branco, negro como a noite mais fria e polvilhado de analogias e metáforas para a vida real, para enfrentar a vida dura dos tempos modernos, da solidão dentro da multidão. Fez tanto sentido quando saiu, no tempo existencialista do grunge e da “geração rasca” às voltas com a incerteza do futuro e do fim da festa, com faz hoje em dia, num momento em que a lei da selva aplicada â economia e ao quotidiano impera.

Bons sonhos!