Tal como todas as minhas crónicas, também esta se rege pela exactidão e o rigor histórico. Não existe nela a mais pálida centelha de intrujice nem falácias de retórica. Comecemos. Corria o ano de 2654 e um jovem abastado das grandes famílias de Hwange, herdeiro das mais proveitosas minas de Neodymium, Herbium e Lanctanyum nos cintos de asteroides dos planetas gémeos gigantes de Gliese (81a e 81b) olhava pela janela contemplando o nada, aquele ponto intermédio de quando estamos a divagar na nossa natural letargia matinal. Arregalou rapidamente os olhos e levantou-se. Pegou na mochila com módulo para viajar no tempo e no capacete BrainSynchro, acessório obrigatório, e correu pela casa à procura das portos de exaustão espaço-temporais. Não os usava com frequência e confundia-se sempre. Estava decidido a viajar para o ano de 2014 e assistir à estreia de um dos seus guilty pleasures favoritos, Guardians of the Galaxy. É um dos poucos filmes que ainda existem comercialmente daquela época em que um país, Estados Unidos da América, liderou temporariamente as tendências mundiais do cinema. Agora é um local estéril ainda sob um manto denso de inverno nuclear onde nem as amibas conseguem viver. Mas qual o país do hemisfério norte que não está assim, não é? O rapaz (chamemos-lhe rapaz) tinha este filme em HD, UHD, 3D, Imerton2032, Holodeck Vision, HipnoTech, SuperIncrivelHD (3D e cheiro) e PornoSpoofEnablerUHD. Ainda assim quis voltar ao tempo em que as pessoas o viram pela primeira vez. Carregou no botão que sincroniza as ondas cerebrais com o módulo de viagem no espaço-tempo e desapareceu. Ter-se-à esquecido de um frango churrasco liofilizado com migas que a sua mãe lhe havia preparado. A comida do séc. XXI é tão tóxica todos os viajantes voltam sempre de lá para passar uma semana submergido numa piscina estaminal reconstrutora, como aquela onde metiam o Vegeta quando apanhava no focinho. Excepto a comida chinesa à base de carne de cão, uma delícia e ainda por cima saudável.
O Rapaz aparece no topo de um edifício, esconde todo o equipamento que pode levantar suspeitas a estes selvagens do passado e dirige-se para a entrada do cinema com a ajuda de uma planta do planeta inteiro que havia carregado no lóbulo frontal. Tentou comprar um bilhete mas não o quiseram vender. Primeiro teve receio que o tivessem topado como viajante do futuro. Depois percebeu na idiotice do seu raciocínio. Afinal de contas estamos a falar de uma civilização que acha que as coisas são melhores só por serem mais caras, que avaliam os seus conterrâneos só pela aparência física e acham que pornografia é imoral. Malta que nem os artigos precisa de ler para opinar baseando-se apenas no texto do link, sempre óbvio clickbait. A razão pela recusa era que havia uma norma que impedia quase todas as bilheteiras de vender bilhetes a pessoas não acompanhadas nos EUA porque, aparentemente, havia malta que desatava aos tiros nos cinemas. Não sabia se era por irem sozinhos. Correu todas as bilheteiras da cidade até encontrar uma que permitia. Era meia noite. Entrou com pipocas, coca-colas, chocolates, duas dúzias de donuts, um cachorro-quente a imitar vegetariano mas de carne de vaca, o recibo de pré-venda do DVD e um conjunto de loiça para 24 pessoas todo em motivos Groot e Rocket Racoon. Foi a condição para lhe venderem o bilhete sem companhia. Também não interessava nada, uma vez que o sistema monetário destes primitivos é baseado em dados informáticos, um simples implante de BrainVoltFiber servia para os enganar e até pagar dívidas de países inteiros.
Sentou-se e esperou 30 minutos de publicidade até começar a meia hora de trailers, teasers, publicidade disfarçada de trailer vários tipos de conteúdo incapaz de ser categorizado. O filme começa. A primeira coisa que reparou foi na fraca qualidade da imagem e o facto de não se poder tocar em nada porque aparentemente este 3D é só ilusão de óptico. Teria que afagar os seios de Zoe Saldana na privacidade do seu lar, talvez até lhe fazer uma visita de HoloDeck para inspeção intra-cavitária, se é que me estou a fazer entender.
Durante duas horas embebeu-se da simplicidade do entretenimento mainstream do Sec XXI e viu com os olhos destes arrogantes primitivos o filme, tentando emular a primeira vez. A reacção de uma sala cheia de pessoas ajudava. A primeira coisa que lhe saltou à vista era que se tratava de uma comédia. Nunca o tinha visto nesta perspectiva, mas OK, agora percebeu. E até percebeu porquê. Aparentemente os nativos tinham rituais de acasalamento em volta destas idas ao cinema, e de maneira a facilitar o coito e perpetuar a espécie através destes impulsos primitivos, os criadores de filmes tentavam misturar elementos para que pudessem ir também as fêmeas e que não morressem de tédio com esta temática adolescente. Não era uma mistura má, confessou a si próprio. Funcionava como estratégia de curto prazo mas a sua banalidade tendia a que se tornasse facilmente esquecível a partir do momento em que os canais de TV temáticos o comecem a passar aos domingos.
Tem piada que as pessoas ainda acreditavam num futuro de sucessos para a Marvel. Ninguém pode prever escândalos sexuais com animais de médio porte, não é verdade? Principalmente ao nível de CEOs das maiores empresas do mundo do sec. XXI. Mas isso é História de escola primária e todos já vimos essa série no NetflixPlus que a Microsoft ressuscitou no sec XXV com o nome de código Buck Rogers.
Quando o filme acabou ainda passou pela baixa da cidade. Meteu um preservativo alimentar, que protege os esófago e estômago do veneno que se comia no início do sec XXI e pediu uma bacalhoada com grão. Pensou no filme. Tratando-se de um filme que depende muito de efeitos especiais e no avanço tecnológico da indústria é óbvio que se vai degradar com o tempo. Nunca percebeu aquele discurso de que ressuscitava o espírito dos anos 80 dos anos 1900. Para ele a cultura desde 1900 até 2050 era indiferenciável. O que lhe pareceu é que havia uma crítica nos fãs generalizada de que o cinema de aventuras perdeu a magia que tinha nos anos 80 e meia dúzia de argumentistas procuraram na internet listas de elementos chave dos filmes da época dourada dos anos 80 e depois os enfiou a martelo nestes Guardians of the Galaxy. Umas músicas, um actor a imitar tiques de personagens memoráveis anteriores e com isso tentar enganar a malta que o espírito dos anos 80 estava presente.
Tentou extrair o seu núcleo, o se âmago, a alma deste filme. O que faria deste filme uma obra que alguém preze no futuro? O humor era primário, os efeitos especiais eram “business as usual” e na sua opinião roubavam muito protagonismo. A alma deste filme era ténue, quase inexistente. Era uma história de amizades improváveis, de redenção, de crescimento emocional. Mal feitinho, forçado e um bocado difuso. Aquilo que um grande pensador um dia chamou de “Filme Boff”. Ainda assim notava-se haver algum cuidado em o diferenciar dos horríveis filmes plastificados que pareciam inundar sazonalmente as salas de cinema. Sempre no Verão, inexplicavelmente. Aos olhos do cinéfilo dos anos 50 (dos anos 2600), era incompreensível como estes rudes primitivos preferiam estes sub-produtos aos filmes bons que eram produzidos e quase ninguém via. O marketing, dizem os historiadores, essa praga social que carcomeu a sociedade entre 1950 e 2054 até à sua quase destruição. Em 2644 uma empresa de iluminação integral de pequenos planetas tentou enganar um sistema solar inteiro com uma dramatização de meio minuto que transmitiu no intervalo de uma telenovela mexicana primitiva que havia sido restaurada a partir de uns DVDs numa nave espacial encontrada a orbitar Neptuno. Não preparados para falácias e mentiras publicitárias, os gestores dos sistemas solar compraram o produto, aparentemente, 10 vezes acima do preço de mercado. Antes que a empresa fizesse reviver esta primitiva estratégia de engano, todos os seus membros directores foram julgados em Betelgeuse e mais tarde todos executados em Arrakis. Bela semana de televisão essa…
Bom e assim acaba este pequeno texto do futuro daquele que já é considerado unanimemente na internet “O segundo melhor filme que vi ontem”. Deixo-vos com um exemplo da verdadeira obra prima de James Gunn, a série PG13 Porn. Este episódio é com a Sasha Grey. O punchline é demoníaco e ilustra bem quanto Gunn foi mal utilizado neste filme.
E este Helpful Bus – Uncensored!
Still, o Prometheus continua a ser pior.
O Prometheus é o sonho que comanda a vida.