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A grande novidade do Nalgas Film Festival 2022 foi a inclusão de um grande convidado. Depois de meses de negociação, trocas avultadas de géneros, gado caprino e dinheiro vivo enrolado em elásticos, logística complexa para evitar que a sua multinacional encerrasse ao sábado, o Sr. Joaquim anuiu em comparecer como convidado de honra. À porta, alto e espadaúdo, pimpão, calças vestidas, fazia a recepção cerimonial dizendo aos convidados “bem vindos a casa”. Esta imagem de tamanho real foi criado pela Carla Rodrigues, a mãe do Sr. Joaquim, com as suas maravilhosas mãos de ouro que enaltecem o património das Nalgas. Também ela, a Carlucha, esteve presente no evento com estatuto de Nalga Dourada. Acabou por levar o Sr. Joaquim para casa ao final da noite, deixando o seu namorado, o Pedro, a dormir no sofá. Ninguém pode julgar porque todos nós faríamos o mesmo perante o apelo animal e a atração selvagem que emana hormonalmente pelos poros do Sr. Joaquim.
Seguiram-se então mais algumas curtas de amigos da Nalgas, como o próprio Luisão (Luís Alves) apelidou este efusivo público.
O Caso Coutinho – Luis Alves (2022)
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O Luis Alves é um realizador nacional que sigo há anos que tem um defeito muito grave: ainda não realizou uma longa metragem. É um artista com um sentido de crítica sociocultural muito apurado e, convenhamos, certeiro. O Caso Coutinho conta uma noite decisiva na vida de um ex-combatente do ultramar. A introdução sugere que estaremos perante um caso de expropriação por um conglomerado turístico de um idoso para transformar o seu complexo habitacional em mais um airbnb para camones virem comer pastéis de bacalhau com sabor a queijo da serra e fumar charros. Gentrificação, esse tumor que corrói Lisboa por dentro e no final há-de alastrar para infectar o que falta. Luis transforma este pesadelo numa viagem aos transtornos. O stress da guerra, que nunca abandona por quem ela foi consumido, a medicação que altera os sentidos, o pânico da solidão e do desamparo, ser empurrado para fora da sua casa e ficar perdido no mundo, na altura mais frágil da nossa existência, como um recém nascido abandonado num caixote do lixo. E é este cocktail de paranoia, fobias e múltiplas interpretações que Luis filma, bonito, para nos entreter, enfurecer e nos colocar a ponderar as injustiças de que os outros sofrem e, se não nos metemos a pau, também a nossa pele beijarão.
PS: Luis, se me estiveres a ler, o plano inicial da barba e da lâmina é homenagem à curta de Scorsese?
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Azoresploitation é um termo que tem vindo a levantar poeira nas internets nacionais. Nos escuro das suas caves, os aficionados do terror teclam incessantemente em uníssono acerca das maravilhas deste sub-género. Um homem, Francisco Lacerda, de costas largas de todo o peso que carrega, tornou visível esta expressão e deu aos Açores uma reputação inesperada, a região demarcada do cinema de género, que é como quem diz, o terror, o gore, a violência extrema, e depravação sexual, a imaginação sem limites, o herói do escapismo nacional. Que se foda o a vinho do Porto, a tortas de azeitão ou o galo de Barcelos. Tragam-me mas é o gore dos Açores!
Freelancer (2017) – Francisco Lacerda
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Não podemos falar de Azoresploitation sem mencionar também um dos masterminds por detrás desta demanda, o incansável Francisco Afonso Lopes. Com o seu ar de patusco, esconde toda a sua perfídia enquanto ator em explosões de inesperada fúria que fornece às obras em que entra os extremos que tornam a experiência única. Em Freelancer, Francisco Afonso Lopes é um videógrafo em dificuldades. Fez um trabalho para uma máfia local e não consegue ser pago, as suas submissões de CVs não surtem efeito e precisa de dinheiro. Vai filmar uma cerimónia genérica para ganhar algum, uma festa sem alma tão familiar a estes profissionais da multimédia que já nem ligam, porque a malta tem que ganhar a vida. Neste caso o “sem alma” tem um outro significado. A meio da festa as coisas saem fora do controlo e digamos que, sem spoilar, é uma viagem alucinante. Violência, gore, terror à séria, temas que nos fazem acordar encharcados a meio da noite, enfim, Lacerda mete a carne toda no assador. Salsichas e tudo. Comentei lá com várias pessoas, algumas até terão adormecido a meio do meu monólogo, que admiro a criatividade em todo o lado. Aqui há mais que isso. Há criatividade, sim, mas há também a capacidade de não encarcerar essa criatividade, de a deixar fluir livre. Este filme é a verdadeira liberdade criativa, solta, sem refreios. Digamos apenas que dificilmente teria apoio corporativo para ser feito. Lindo demais.
Sofre de um flagelo que é transversal a este tipo de produções, as fracas qualidades de representação de alguns atores, neste caso o elenco secundário. Não é nada que retire nobreza à obra, que sabe disfarçar essas fragilidades que reconhece. Nem chega para tirar meia estrela às cinco.
Karaoke Night (2020) – Francisco Lacerda
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Lacerda regressa com Karaoke Night. Desta vez em parceria com Fernando Alle, que faz uma perninha como actor secundário. Não sei se tem papel técnico nesta produção. Imagino que sim, a sua contribuição costuma ser facilmente identificável (vejam o filme do Bruno Aleixo, por exemplo). Podemos perguntar aos próprios, é verdade, mas lançar ao ar assim estas sementes da dúvida ajuda a criar o sururu que faz gerar o falatório. E publicidade, amigos, é publicidade. Um par de narcos sul americanos, digo eu, vai curtir para os Açores, aproveitar os recursos e tentar aproveitar-se também desses mesmos recursos. De gaita túrgida, ardendo de tesão e embriagado à quase inconsciência tenta aproveitar-se da miúda gira que canta no bar. Má ideia. É mais um exemplo deste género tão característico como incrível, criado por Lacerda com o apoio, imagino eu, do outro Francisco. Fabulosa cinematografia, iluminação bonita e, claro, aquele gore tipicamente açoriano que nos habituámos a amar. Ponto extra para a banda sonora que eu gostava muito de poder ouvir diariamente. Alguém?
Cemitério Vermelho (2022) – Francisco Lacerda
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Lacerda sai da sua zona de conforto para se aventurar pelo Western Spaghetti adentro. Igualmente sangrento, menos sodomias dilacerantes por via do sobrenatural, mantém o cunho do made in Açores. A premissa é um bate boca com dois bandidos que se traíram mutuamente mas continuam a precisar um do outro para sobreviver. Tensão ao máximo e cinematografia vintage por via de algum material de época que garante a autenticidade da visão. As referências são muitas e todas boas. Cemitérios sem cruzes, a melhor. O filme que apaixonou as Nalgas no Nalgas Film Clube. Um dos melhores spaguettis e a das melhores, também, bandas sonoras. E para terminar mais um Lacerda Fest, este produto regional já tão característico como os ananases, o queijo de São Jorge ou aos Punhos de Madeira Retais de Santa Maria, um climax sangrento a condizer com a acumulação energética do filme. Tudo por 10 mil miseros escudos.
Ver estes 3 filmes de ponta a ponta, seguidos e por esta ordem, é uma experiência quase transcendental. Só não tinha visto ainda o Freelancer, queria ser surpreendido por algo novo no NFF, apesar de termos os screeners cedidos pelos autores. A ideia com que fiquei da sessão, daquela massa coletiva, é que toda a gente amou. Ninguém foi ao Nalgas Film Festival ao engano, todos sabiam exatamente o que poderiam esperar. E foi-lhes dado o que queriam, um pedaço do universo Nalgas.
Espero que o Azorespoitation seja para continuar porque eu cá estou esperando com uma Kima de Maracujá para seguir esta empreitada até ao sucesso mundial. E, mais uma vez, alguém me arranja a música do Karaoke Nights?
#fim da segunda parte#
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