No final da primeira década do século XXI as salas de cinema tradicionais estão extintas. Nos últimos 25 anos o acto de ir ao cinema foi barbaramente desfigurado. De uma experiência quase religiosa, terapia de grupo ou tertúlias de amigos cinéfilos transformou-se numa quase obrigação social, ritual de acasalamento ou simplesmente pelo grãos de milhos rebentados pelo calor e cobertos de sucedâneo de manteiga sintetizado e edulcorantes químicos (que fazem encolher os testículos). A falta de respeito pela arte cinematográfica está igualmente distribuída pelas distribuidoras e pelo público. A lavagem cerebral dos últimos 15 anos levou Portugal a acreditar que só existe um verdadeiro cinema, o americano, e tudo o resto são cultos extremistas de uma estranheza inarrável. Para quem não foi ao cinema nos últimos 10 anos, eu passo a explicar neste modesto artigo que se segue.
Depois de escolhido o filme temos que comprar bilhete. Os complexos de salas têm bilheteiras imensas, cheias de caixas e pessoas que parecem ser funcionários. De repente reparamos que faltam 10 minutos para começar o filme mas respiramos de alívio porque só há 4 pessoas à nossa frente. Começamos a ficar preocupados quando faltam 2 minutos para o filme e só foi atendida uma pessoa. Porque será? Quando eu ia ao cinema Avenida ou ao Tivoli eram sessões com 500 espectadores e despachavam centenas em 15 minutos… Quando chega a nossa vez encaramos com um jovem que deixou recentemente a adolescência mas que ainda se encontra em processo de mudar a voz. As perguntas monocórdicas seguem-se em catadupa hipnótica, como se saídas de um transe ou ritual milenar. “Quanto bilhetes? 2. Tem preferência? Para o meio. Não há. Então dê-me um qualquer. Vai querer pipocas? Não. Com açúcar ou sal? Não quero pipocas. Está interessado por mais 50 cêntimos levar a caixa média de pipocas e a bebida média? Isso é o quê? 3 metros cúbicos de pipocas e um alguidar de coca-cola de pressão. Não estou interessado. Tem cartão Zon? Não. Milénium? Não. Desculpe, pediu com sal ou açucar? Não pedi. Ok, são 385 euros.“
Entramos num corredor e a nossa sala é sempre a última. Vamos ouvindo sons a sair das salas. Umas gritam de agonia, noutra ouvimos os espectadores a rir, noutra um cão ladra e ouve-se música heróica. Quanto entramos na sala vazia dirigimo-nos ao nosso lugar. Curiosamente já passam 10 minutos da hora e estão as luzes acesas e não começou a sessão. As luzes apagam. Algumas luzes mantêm-se acesas por motivos legais. Dá um trailer ou teaser rápido a um blockbuster eminente. Depois começa a publicidade.
Os anúncios publicitários em cinema são longos, alguns na ordem dos 2 minutos. Então começa a agonia. Uma publicidade gigantesca a cerveja com jovens a divertirem-se numa discoteca e depois a acordarem depois de uma noite divertida ( e possivelmente sodomita) com música orelhuda de arrepiar pêlo. Depois a publicidade a cola ou a um fast food com estrelas do futebol a fazerem feitos sobre-humanos ou a salvar o planeta nos penalties. Loonga…. Uma da EDP enorme, outra de um banco, telemóveis, um inferno. Quando tudo parece ter acabado vem aquela publicidade da Vodafone em que nos pedem para fechar os olhos para a história ser contada com efeitos sonoros, a imitar esta do barbeiro. Além não ser minimamente imersiva como prometem, dá sempre que vou ao cinema. Vem-me o sabor do almoço à boca…
E com isto passou quase meia hora. Meia hora da minha vida que paguei para assistir e me faz estar muito perto do estado de insanidade mental apenas curável com eletroconvulsoterapia. As luzes apagam finalmente e começa o filme. Um bom plano inicial, cenas de poesia cinematográfica que prometem. Ou prometiam, porque aos 10 minutos começam a chegar as pessoas todas, a encher as cadeiras, a falar, a meter os casacos em cima da minha cadeira, a acabarem as conversas ao telemóvel, a tossir, rir de anedotas que ouviram na rua. O diabo a sete.
Quando aos vinte minutos as coisas acalmam começa a ouvir-se a omnipresente cacofonia das pipocas e das bebidas. O “munch munch crunch crunch” invade-nos o cérebro como um invasão de ratazanas estridentes. Sentimos o cérebro a distender e comprimir e aquelas vozes que já não apareciam há muito tempo começam a sussurrar “Mata-o! Tira essa faca que trazes sempre e trespassa-lhe o fígado.“
INTERVALO. Intervalo? Que merda é esta? Intervalo? Por motivos comerciais, agora há intervalo. Para vender mais merdas que me vão enlouquecer nos primeiros 30 minutos da segunda parte.
Segunda parte, na parte mais emocionante um telemóvel toca ao meu lado. Um tipo diz “Agora não posso, estou no cinema. (…) Ai sim? Ela disse isso? (…) A vaca. Mas isso é mentira (…) Pois, eu sei que ela tem fotos. (…) Não era um cavalo era um pónei. E foi para um trabalho na escola (…) Sim, sim, já me consigo sentar. (…)“
E foi mais ou menos esta a minha última experiência no cinema. Não sou esquisito, longe disso. Mas há regras básicas implícitas que deixaram de ser respeitadas. A sala de cinema como santuário da sétima arte também já não existe e vendilhões ocuparam o templo. Sou um gajo normal, que aprecia um bom felácio e coça os testículos amiúde, mas caralhos me fodam se a pirataria não parece melhor ideia a cada dia que passa.
Engraçado… as ultimas vezes que fui ao cinema a única motivação que me levou lá foi a dimensão do ecrã, e a dimensão sonora da experiência, que não posso replicar em casa pois ainda tenho respeito pelos meus vizinhos, o que aponta para exactamente o tipo de filmes que não “passavam” nos nimas, quartetos e afins.
Ou seja, a ida ao cinema para mim passou a ser um momento de “desligamento” obrigatório do cérebro… filme que é filme… é pirateado, no conforto do meu sofá…
Só que isto não dá dinheiro a quem faz os filmes… por isso…
Tenta ir ao el corte ingles… Não é que a experiência seja melhor, mas quem vende bilhetes não vende coca-colas e pipocas… a fila despacha-se mais rapidamente.
Esqueceste-te do intervalo da Super Bock que enerva sempre!
De resto parece que tens razão, embora adore ir ao Cinema mas também odeio essas coisas e mais que isso odeio quando as editoras não passam filmes no Cinema por causa dos lucros!
As pessoas pensam que só existe um Cinema, o da Zon!
Abraço
http://nekascw.blogspot.com/
o monumental é sempre boa ideia. nem sequer há pipocas na sala.
Excelente texto Pedro!
Pus um post lá no estaminé para os meus leitores virem ler o texto completo aqui:
http://cine31.blogspot.com/2010/02/ir-ao-cinema-em-2010-cinema-xunga.html
Ir ao cinema tornou-se aborrecido, incomodativo, chato, irritante até. Há muito optei por deixar a ponta-e-mola, que trazia religiosamente no bolso interior do sobretudo, em casa com receio de não resistir em usá-la. É como dizes, aos cochichos e risota iniciais de quem insiste em entrar na sala 15 minutos após ter começado a fita, segue-se o impossível de suportar barulho do remexer constante nos “alguidares” de pipocas e baldes de “cola-cola”. Referes que os edulcorantes químicos contidos nos grãos de milhos sobreaquecidos pelo calor fazem encolher os testículos, permite-me discordar. A avaliar como certos cro-magnons (sem querer insultar os antepassados que nos deram o fogo e por aí fora) se sentam de pernil escancarado a roçar o nosso, diria que o efeito é precisamente ao contrário. Não sou assim tão velho (pertenço à geração de 70) mas lembro com alguma saudade o acto de culto que era ir ao cinema com os meus pais, depois com amigos e, mais tarde, até sozinho. Ainda hoje procuro fazê-lo com a minha mulher ou com outros cinéfilos tertúlianos. Missão hercúlea já que, exceptuando uma mão semi-cheia de salas em Lisboa, o panorama é manifestamente mau. Se sairmos da capital então mais vale esquecer. A vaga de gandulagem suburbana que conspurca as salas “multiplexes” e similares impedem, por completo, a experiência som/ imagem que estas oferecem. Sinceramente (e não sendo apologista da pirataria) mais vale sacar o filme e vê-lo sossegado em casa, nem que seja num singelo LCD de 17′
Tal como tu, Pedro também não me considero um gajo esquisito, ou geek, ou nerd ou o caraças com que as pessoas, ditas “normais”, tendem a rotular tudo e todos, mas procuro (e acho que procurarei sempre) perspectivar a sala de cinema como um templo de contemplação à sétima arte. Preferencialmente em silêncio e sem fast-food de algibeira à mistura. Vendilhões, tal como fez o outro senhor, é preciso expulsá-los de vez. Nem que seja pela força da chibata!…
Bom blogue. Continua o bom trabalho. Abraço!
^^
AMEN!
por acaso, já nem sei qual foi o ultimo filme que vi no cinema… mas quando vou costumo escolher um filme que já la esteja há mais que 15dias para que seja o menos concorrido possível, sempre é mais sossegado…
O melhor dia para se ir ao Cinema é , num dia de semana á noite, última sessão, estão duas ou três pessoas na Sala, sentadas a Km de distância e pode-se ver o filme á vontade, ao Fim de Semana é quase um suplício, vê-se e houvesse tudo menos o que mais interessa o filme.
Sempre gostei de ir ao cinema. A qualidade de imagem, o som, tudo que nos envolve ainda mais no filme.
Porém, nos últimos anos!! não tenho ido ao cinema.
Porquê, perguntam? Porque os filmes actualmente são mesmo muito maus, então aqueles alvo de mais/maior publicidade….(vejam os nomeados para óscares se não tenho razão)
Depois os preços são uma loucura (6€ acho que foi o último preço que vi).
Se é pela confusão de bilheteiras nada como ir ao cinema com balcões separados; pela confusão de pessoas o Carlos deu a solução.
A pirataria serve para ver filmes que nunca na vida pagava para ver – daí que comigo não perdem dinheiro – pelo contrário se vejo e gosto, comunico a colegas que vão ao cinema ou acabam por comprar o DVD (ou eu), logo, com a pirataria, ficam a ganhar €..
Pessoalmente tenho um defeito… gosto de pipocas e do intervalo. Contudo, compro um balde pequeno que ao fim dos trailers já acabou…
Já agora fica uma sugestão ao pessoal de Braga, vão ao Bragashopping, o filme começa mesmo 5 minutos depois da hora marcada e tem bilheteiras separadas.
Abraço e parabéns pelos excelentes posts.
Tenho que admitir que o que me incomoda mais e já me levou a profundas reflexões filosóficas é o grupo de meninos e meninas que vão para uma sala de cinema para, pura e simplesmente, falar.
E não é o simples acto de falar. É o falar aos berros, sair e entrar constantemente na sala, com um desplante e arrogância pouco comum em crianças tão novas (a meu ver).
Não demonstram nem respeito, nem educação. Mas isso já nem me surpreende. Bolas, é a geração “morangos com açúcar”, o objectivo é não haver respeito. Só assim parecem ser fixes e são aceites entre si. O que me surpreende e me leva a agoniantes pensamentos, é o porquê! Porquê que vão para uma sala de cinema ver um filme, pelo qual não demonstram qualquer interesse? Porquê?!
E a situação torna-se ainda mais aberrante e desesperante, quando chamamos um “segurança” e este fica na sala uns meros minutos – ficando toda a sala em silêncio – e depois sai, para voltar toda a balbúrdia!
Torna-se cansativo e enervante ir ver um filme hoje em dia. Quando devia ser algo entusiasmante e divertido.
Mas o problema não é só das crianças. Começa em casa, com os pais a financiarem estas actividades terroristas e os próprios cinemas, que deveriam ter pelo menos, um segurança por sala…
Este sim é para mim, o grande problema do cinema em Portugal.
Abraço,
Dan – CineObservador
Pedia, cordialmente, a tua permissão para publicar uma ode ao que sinto sempre que vou a uma sala de cinema em Portugal. Concordo com 99% do que dizes. Apenas acho que uma faca para estripar é pouco. Recomendaria um garfo para arrancar os olhos…
Excelente texto pá! Concordo em absoluto com o que disseste! Aturar essa cambada de gnus não é fácil. Não dá para perceber porque raio gastam 7 ou 8 euros para ir falar ou ruminar pipocas para a sala! E aqueles palhaços que sacaram o filme antes de sair e vão para lá numa de intelectuais e estão sempre a dizer ” e a seguir vai acontecer isto” “este vai morrer”. Ouve lá morre tu! Cala-te! Foda-se, nos últimos filmes que vi, tive melhor experiência em casa que no cinema. Bestas do caralho. Só dá vontade de espancar e derivados.
olha que site fixe 🙂
ando a ver um a um os outros blogs a concurso, o das outras categorias, claro! e este, devo dizer, agradou-me muito! vou votar, sobretudo porque, como inscrita, não tenho de passar pela seca toda… 😉
boa sorte e parabéns pelo trabalho!
Concordo em absoluto contigo (embora goste de comer pipocas nos filmes que sei à partida serem pipoqueiros – estou-me a lembrar do 2012 e dos Transformers).
Pessoalmente adoro ir ao cinema, principalmente em filmes que valem a pena pela experiência audiovisual que não consigo ter em casa. Mas a quem teve a brilhante ideia de meter publicidade no cinema devia nascer-lhe um sobreiro gigante mesmo no olho do cu. O preço dos bilhetes parece aumentar quase semanalmente, ainda temos de gramar com longos minutos de publicidade e os filmes que temos à nossa disposição nas salas de cinema parecem partilhar cada vez mais uma caracteristica com a música com que somos bombardeados diariamente – são descartáveis.
É caso para dizer que a arte em geral, não só a 7ª, está na merda… graças a esses vendilhões.
E pior é não se poder fumar. É só desvantagens…
epah, realmente o texto está excelente… e acho que aqui o tio xunga ganhou uma boa carrada de visitas à pala deste desabafo.
continua com textos assim, por mim estás aprovado!
obrigada por me recordares o prazer da sala de cinema… desde a infância.
Obrigado por traduzires em palavras tudo aquilo que sinto quando vou a uma sala de cinema, nomeadamente em “hora de ponta”. O que mais me irrita mesmo é a chamada “brigada da pipoca”, aquele grupinho de adolescentes (ou nem por isso) que encara a ida ao cinema como uma ida a um bar ou a uma discoteca: um sítio para se estar com o “pessoal”. Uma das memórias mais nauseabundas que guardo dos tempos mais recentes foi durante o “Changeling”, quando um desses energúmenos, ao passarem os créditos iniciais, se vira com ar jocoso para o resto da trupe e grunha “f*******, não me digam que é um filme de chorar(sic)”. Dá mesmo vontade de me armar em Dirty Harry e enfiar-lhes um balázio no meio dos olhos! :S
Infelizmente cada vez menos tenho vontade de ir ao cinema! e quando vou tento ir a ultima sessão, quando os morangos com açucar já foram para a noite. Mas eis que a uma da manhã intervalo!!!! intervalo! é uma da manhã!!!!
Por culpa das pipocas, dos desgraçados intervalos a uma da manhã!! dos telemóveis que não param!
Há filmes que ganham muito com uma presença no cinema (300, O fantasma da Opera, Avatar) mas fora esses, cada vez menos vou ao cinema.
Não culpem a pirataria, culpem a falta de cidadania, as pipocas os intervalos e a porcaria das publicidades de 20 minutos.
Por isso cada vez menos gente vai ao cinema.
Texto sublime!
A última vez que fui a um cinema foi para ver o “Avatar”… e mesmo levando uns óculos “Real Fucking 3D” de uma outra sessão, tive que pagar uns novos porque mos obrigaram a comprar com o respectivo bilhete…
Obviamente, depois disso baixei as calças ao funcionário e perguntei-lhe, educamente: “Olhe, e já agora não me quer sodomizar?”.
Depois disso não voltei ao cinema.
Pedro, achei muito interessante sua matéria e todos as situações relatadas nos comentários, tanto é que quis comentar também. Aqui no Brasil moro numa cidade pequena e interiorana onde o cinema corre o risco de fechar por falta de espectadores. Em Itabuna, cidade onde moro, e nas outras cidades onde tive a oportunidade de ir ao cinema nunca houve intervalo no meio da sessão ou bilheteiro vendendo pipoca. Creio assim que estou bem servido de cinema.
Mas preciso lhe dizer que os o problema dos maus espectadores geralmente é fruto de uma má escolha do filme em cartaz. Tem muito filme ruim aí que é lançado para o público “teen” que não merece ser assistido no cinema.
Por fim, acabo por assistir muitos filmes em casa. Entendo que o pior do cinema hoje em dia são os próprios filmes. Filmes bons geralmente não entram em cartaz.
Um abraço Pedro, e parabéns pelo Blog!!!