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Shutter Island (2010)

Publicitar um filme baseado nas glórias passadas do seu realizador, no parentesco afastado de um produtor obscuro, nos prémios recebidos (ou quase) dos seus actores é uma estratégia que desprezo. Assim como desprezo quando a publicidade de uma determinada produção me tenta manipular antecipadamente descrevendo de modo bastante leviano como me vou sentir no final. Este aglomerado de marketing desonesto foi utilizado para construir hype neste filme, mas acaba por ser contra-produtivo e desnecessário pois o filme vive por si só. Shutter Island é uma obra superior de entretenimento, tanto em conteúdo como em beleza cinematográfica.

Martin Scorcese é aquele realizador que tenho no meu limbo de estima. Uma boa carreira inicial, facto indiscutível. Recentemente tem andado de par a par com bons filmes e tiros no pé. Gangs of New York é um bom filme, Aviator nem por isso (tenho o DVD ainda em celofane…), Last Temptation of Christ é uma obra superior, adoro Goodfellas. Casino e Cape Fear não me excitam. The Departed nunca vi, porque gosto tanto do original que até tenho medo. Leonardo DiCaprio continua a ser para mim um ídolo de teenagers apesar de já ter uns 60 anos ou qualquer coisa. Assim, respeito-o principalmente pela interpretação caótica e anarquista em Celebrity de Woody Allen, quando ainda não tinha aquele corpanzil de quarentão casado que ostenta neste filme.

E acabei por ir ver Shutter Island apenas porque tinha uma tarde livre e não havia mais nada de jeito no cinema. Sinceramente até ia desiludido por antecipação porque o hype que precedeu este filme fez-me estar um passo mais perto de bater numa velhinha ou chutar um caniche na rua por pura irritação espontânea. Aquela meia hora de publicidade e morte cerebral que antecede um filme no cinema hoje em dia também não ajudou. Mas eis que o glorioso ecran de formato extra-largo (2.35:1) se abre em todo o seu esplendor e começa o filme.

Rapidamente sou absorvido pela qualidade e beleza da fotografia. Um cuidado que se mantém até ao final, criando um filme muito agradável esteticamente. E a narrativa arranca também com uma boa premissa. Mas rapidamente somos confrontados com uma enigmatica narrativa entrecortada por momentos bizarros que podem muito bem fazer parte da história como pode ser inaptidão na montagem. Mas inaptidão técnica não me parece existir numa produção desta magnitude. Enigmático e bizarro, com andamentos lúcidos e outros mais estranhos, com delírios visuais e um grão delicioso na imagem a lembrar que ainda se filma em analógico.

Somos manipulados de ponta a ponta pela mestria de Scorcese. Seja qual for a facção a que nos juntemos durante o filme (sim, temos que escolher) temos que pensar e repensar a nossa posição. Ainda durante o filme temos que reorganizar elementos, temos que invocar experiências cinematografias anteriores para fazer sentido de tudo. E mesmo no final os pontos de interrogação invisíveis seguem a flutuar à volta das nossas cabeças durante umas horas, até àquela travagem seca em que quase atropelamos uma família na passadeira por falta de atenção. Requer, definitivamente, uma segunda visualização.

Escrever sobre este filme é muito complicado. Temos que andar em bicos dos pés em redor para evitar spoilers. Alias, escrever sobre o que quer que seja é complicado. Vocês que têm blogues e sites, que são a maioria dos meus leitores, nunca deram convosco a pensar “porque raio é que eu tenho um blog onde falo de tretas que estão muito mais bem escritas noutros lados”? Às vezes penso nisso. Nisso e na utilidade de escrever críticas de cinema. Provavelmente faria muito mais efeito um gajo mandar um balázio na mona durante a projecção do próximo Homem Aranha e deixar uma carta escrita a dizer “Senhores produtores de Hollywood, suicidei-me porque blockbusters de merda têm este efeito em mim”. Bastava que 4 ou 5 pessoas fizessem isto para que o boato de que os Blockbusters de merda fazem as pessoas morrer. Depois daí até à Oprah era um saltinho e o mundo começava a censurar Hollywood por andar a assassinar os nossos jovens. Eu posso coordenar esta operação do ponto de vista das relações públicas, mas vou precisar de 4 ou 5 voluntários que queiram um bilhete grátis para o próximo Homem Aranha e que ainda saibam escrever bilhetes à mão sem erros ortográficos.

PS: Não entrem da conversa de que é um filme de terror, ai ai que mete tanto medo e que me borro todo… Tretas publicitárias!

7 Comments

  1. Peter Alex

    Eu leio as tuas criticas e não tenho nenhum blog. Nem sobre cinema nem sobre outra coisa qq.
    E leio porque gosto de comparar as tuas críticas com as que faço mentalmente e porque a tua escrita e frontalidade me diverte bastante . Às vezes dou comigo a rir que nem um parvo em frente ao monitor…
    Espero que isto ajude tua dúvida existencial!

  2. joemorales

    “Vocês que têm blogues e sites, que são a maioria dos meus leitores, nunca deram convosco a pensar “porque raio é que eu tenho um blog onde falo de tretas que estão muito mais bem escritas noutros lados”?”

    Assim que li esta parte pensei exactamente o mesmo que o Peter Alex. Não tenho nenhum blog/site e venho aqui diariamente porque gosto bastante da tua escrita, e dos momentos em que ao ler penso “ninguém se lembra disto”, e porque adoro cinema. Ou escreveste isso porque a tua auto-estima está em baixo e precisavas de uns elogios para isso subir? Lol. Vi o Moon e o El Orfanato porque me vendeste com a tua escrita uma expectativa elevada, por exemplo. Gostei dos 2, votei nota 8 no IMDB. 🙂

    Quando vi o trailer do Shutter Island fiquei com a ideia que ou era muito bom ou tinha um ganda trailer. Ainda não vi, e a tua discrição não ajudou a ir ao cinema…

  3. Jackie Brown

    Eh eh, parece ser tão difícil que aproveitaste logo para divagar no último parágrafo xD
    pessoalmente, e porque até tenho um blog, percebo totalmente a tua dúvida existencial. até porque a tenho também (embora eu tenha muito mais razões para isso ;))

    Abraço

  4. bruno

    venho aqui ao teu blog praticamente dia-sim-dia-não e também não tenho cá nenhuma dessas mariquices de blogs…
    aliás… nem sei o que venho aqui fazer…
    já deve ser do habito ehehehe
    nem sempre concordo com as tuas criticas, mas sabe sempre bem lê-las

  5. Nekas

    Essa divagação consegue reflectir-se em mim, igualmente. Por vezes, vejo as críticas dos outros bloggers e perguntou-me porque escrevo a minha já que há superiores à minha (?)
    A resposta é motivação, motivação para melhor, motivação para quando outro blogger disser que a minha crítica é superior à dele (futuro distante, penso eu).

    Quanto ao filme, é cedo para se proclamar obra-prima mas, de facto, é espantoso!
    Um registo de Scorsese não muito habitual!

    Quanto à publicidade, realmente este filme não mete medo.

    Abraço
    http://nekascw.blogspot.com/

  6. Ruy

    Como se chama o filme original que deu o remake The Departed do Scorcese?

  7. pedro

    Chama-se Infernal Affairs (título internacional). Ou se preferires os originais Mou gaan dou.

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