Ontem foi dia do Pai e eu tive o privilégio de almoçar com o meu. Um almoço normal sem sentimentalismos sazonais. Não foi marcado pela solenidade do dia, foi fruto das tropelias do destino. Falámos de futebol (em termos leigos para eu perceber), de saúde, de cinema e das séries que ele agora vê. Falámos dos netos, da família, dos cães, dos gatos, do preço do frango ser exorbitantemente baixo ao ponto de se dever desconfiar da qualidade para consumo público, dos morangos que plantou só porque os netos gostam de os apanhar e comer “au naturel”. Já não moro com ele há quase 20 anos, não estou longe, mas é cada vez mais complicado apanhar assim um momento. Já não é o mesmo tipo de pai que era nos anos 80, é agora um orgulhoso avô. O meu pai nunca deixou a família para passar a noite com os amigos, nunca se negou a ler-me legendas de filmes completos antes de eu saber ler, contra a vontade da minha mãe atrasou-me várias vezes a hora de deitar para que pudesse ver o The Incredible Shrinking Man, o King Kong ou o Tarantula de 1955. O meu pai ofereceu-me uma metralhadora de aspecto realista que era a inveja dos putos todos da rua. Levava-me ao cinema itinerante lá do lugarejo todos os domingos, religiosamente. “Olha que ele é novo demais”, dizia a minha mãe. “Não lhe há-de fazer mal nenhum!”, respondia ele sem nenhum pedo-psicólogo a infernizar as ondas hertzianas para o contrariar. Acompanhava-me e aos meus amigos nas futeboladas e deixava-me marcar-lhe golos quando estava à baliza. Foi o meu primeiro grande amigo, o original Bro. Ainda o é, mesmo com as azáfama das nossas vidas. Não somos lamechas nem falamos de paneleirices. Só coisas de homem. Ferramentas, técnicas recentes que vieram revolucionar a tradicional matança do porco e da noite de natal em que nos baldámos à missa do galo para ver o Predator 2. Vê-lo a ser assim com os meus filhos faz-me parar o tempo mentalmente para apreciar aqueles momentos. Mesmo que tenha que disfarçar a emoção quando a minha mulher me pergunta porque estou ali parado a olhar para ontem se há ainda tanta louça para por na máquina. Tem as melhores ferramentas e aparece sempre que há alguma tarefa mais bricolática para fazer, mesmo sem eu pedir.
O meu pai perdeu a sua mãe há cerca de três semanas. Uma matriarca cujo magnetismo era a cola da família. Tinha 91 anos, é verdade, já não estava na sua consciência há mais de um ano, é verdade, todos os esperávamos, é também verdade. Mas nada nos prepara realmente para perder uma mãe, seja aos 30, 60 ou 100. E naquele momento da despedida o meu pai cedeu. Abracei-o e por uns minutos senti-lhe as lágrimas e o choro compulsivo de um miúdo de 12 anos. Apertei-o. Terá sempre em mim um inveterado apoiante, nem que roube galinhas ou mesmo um banco. Nem que cometa genocídio. Coisa que não fará, pelo menos no imediato. Passados aqueles difíceis minutos respirou fundo, limpou as lágrimas, olhou-me com as feições que sempre lhe conheci como que a dizer “E a nossa Académica? Pelo menos já não desce…”. E fomos à nossa vida como numa segunda-feira normal.
Foi neste espírito que vi Nebraska, foi neste espírito do que “um pai é um tesouro incalculável que muitas vezes não apreciamos até ser tarde demais” que me vidrei na história daquele senil papá, da sua mamã não menos treslouca e a sua demanda pelo Santo Graal dos velhotes, neste caso um prémio spammer. É um filme muito emocional quando nos conseguimos conectar a ele, é uma viagem com sabor a derradeira que nos coloca a processar em paralelo a nossa própria relação com o nosso pai, esteja vivo ou morto, perto ou longe, frio ou afável, biológico ou não.
Esta derradeira viagem que altera vidas e a percepção da realidade, que afasta os personagens da sua bolha existencial e da sua área de segurança para as empurrar para uma inevitável conclusão emocional fez-me lembrar The Straight Story, quando em 1999 David Lynch quebrou todas as suas convenções para nos fazer interrogar porque detestamos por vezes as pessoas que mais devemos amar.
Nebraska é brilhantemente filmado, na melancolia do preto e branco em paisagens que, curiosamente, pedem cor. O colorido seria, porém, uma distracção, uma alteração do foco que é reatar de um vinculo há muito perdido, abdicar dos preconceitos e pressupostos pessoais e saber conviver. Não querer ganhar nem impor insignificâncias por questões de ego ou compensações de personalidade por traumas passados. É aprender a deixar fluir o amor, enternecer-se com as imperfeições que criam a singularidade nas pessoas. É aceitar a primordialidade das coisas.
É verdade que esta review não tem caralhadas nem peitinhos. Tecnicamente nem sequer é uma review. É a interpretação daquilo que acho verdadeiramente importante quando vejo filmes, que é o lugar para onde nos transportam. Se nos fazem questionar a nossa posição onde quer que seja, se nos fazem querer rever ou beijar alguém, se nos alertam para a malvadez que nos rodeia, se nos fazem acordar a pensar nele (filme), se é pensamento recorrente, se nos invoca a citação fácil, nunca poderá ser um mau filme. Pelo menos para nós que é quem aqui interessa. E é isso que eu sou, um gajo que vê filmes e procura algum prazer na cinefilia. E que depois vem mandar bocas foleiras nos canais que a malta jovem frequenta. Como aqueles marionetistas que havia no Metro de Paris, mas em versão frouxa e descolorida.
Vão em paz e o Senhor vos acompanhe!
Nota: Ontem, na realidade, não foi dia do Pai. Foi-o quando escrevi o primeiro parágrafo. Em todo o caso o dia do Pai deve ser quando um homem (ou mulher, ou transgender, ou seja lá o que for) quiser. A não ser que o vosso pai seja daqueles que vos “ame desproporcionalmente” quando chega a casa bêbedo, antes de vos espancar a mãe com uma perna de uma cadeira. Nesse caso penso que deverá ser reapreciado o conceito.
se me permites a paneleirice, tens aqui um texto muito bonito. parabéns querido (citando proença).