Ao trigésimo dia do mês de Novembro do ano do Senhor 2015, eis que me vejo incumbido de cumprir o honroso dever cívico e patriota de assistir ao documentário do Capitão Falcão e do excelso Presidente António. Um documentário que transforma jovens desmotivados em ferramentas da nação, explicando com seriedade e clareza o que é ser um verdadeiro português, inatingível por qualquer arma, seja de raios ou de ideias. É certo que me senti desconfortável ao ver-me rodeado por jovens barbudos, indumentária desportiva casual que não honra a pátria, um nauseabundo cheiro a sovaco e de semanas inteiras a usar os mesmos piúgos. Que estaria tão nefasto exército de comunas a fazer naquele sacro santo documentário? Seria um golpe em preparação? Havia até mulheres que se riam descontroladamente fazendo com que as seus bojudos seios abanassem descontroladamente pela falta de decoro de não usar soutien. Como duas montanhas horizontais de robustez carnal. Mulheres de calças que se encontravam acompanhadas por outras mulheres, certamente tinham na boca ainda com o sabor ácido de quem passou o jantar a brincar aos ginecologistas manetas. Assustado não estava, porque o vigor lusitano que em mim corre trataria de desfazer qualquer rebelião com meia dúzia de chibatadas do meu cinto da serra da estrela, curado por pastores nacionais e feito de gado lusitano.
Transportei comigo alguns meses uma grande mágoa, que foi não ter conseguido ir ver o Capitão Falcão ao cinema. Foi apenas uma curta semana que esteve em exibição e tendo eu alguma inflexibilidade da agenda, vi adiado dia após dia a ida. Até que saiu de sala e em Coimbra as coisas boas de cinema acontecem pouco e quando acontecem são micro eventos que tão depressa aparecem como nunca mais ninguém os vê. E tenho vindo a pensar nisto, envergonhado, cabisbaixo. O filme, pelos moldes da sua produção e pelo esforço e paixão dos intervenientes, haveria ser ser apoiado por quem quer dizer algo acerca do cinema português com as suas acções, como um voto em urna. E eu falhei-lhes.
E ainda bem que o festival de cinema Caminhos o recuperou meses depois para que os Coimbrinhas, coitados e culturamente atrasadinhos, pudessem a ele ter novamente acesso. Lá fui, asseado e altivo, sala adentro.
Pouca surpresa haveria de encontrar, por tudo o que vi, tudo o que li, palavras de pessoas em quem confio cinematicamente. Capitão Falcão é uma bela comédia que mergulha sem tabus em terrenos pantanosos e quase inexplorados da nossa história e memória. Sem medos, firme e confiante, Capitão Falcão abre o caminho do seu peculiar universo e arco narrativo à bastonada, repelindo preconceitos como se fossem comuninjas. Não é, de todo, um filme discreto nem a prudência faz parte do seu manancial de ferramentas narrativas, é um filme “In your face”, propositadamente slapstick technicolor como uma explosão na fabrica da Robbialac.
É grande o talento que o acompanha, desde o argumento cuidado cuja estrutura do seu humor foge ao cliché gag após gag. O timing da entrega das cenas e os punchlines estão acima da média de tudo o que por cá se faz. É certo que também há piada de bater com a cabeça algures e de atirar tartes de natas, mas é na entrega das linhas do diálogo do Capitão Falcão que reside a sua aura dourada.
Apesar da escrita e a execução serem os motores desta produção, este é definitivamente o The Gonçalo Waddington Show, o actor que aposta toda a sua paleta de humor nestes 100 minutos. Uma bela representação que só não o cola ao papel em typecast eterno do Capitão porque este foi um bom ano para ele, onde é peça essencial nas Mil e Uma Noites de Miguel Gomes.
Há alturas em que o filme se esgota no seu próprio conceito, ao insistir num circulo reduzido de temáticas que o mantém simples e salutar, sendo que nessas alturas uma reviravolta do argumenta o resgata dessa ameaça de perder gás. Grande argumento, belo sentido de humor. O risco de fazer um filme destes reside em não conseguir meter o cinéfilo dentro do ambiente necessário para o filme nos primeiros minutos, pois se isto não acontece corre o risco de ser considerado uma patetice. Tem que haver um determinado mindset do lado de quem o vai ver, um trabalho de casa, uma preparação prévia. Não se aconselha ao cinéfilo que leva a namorada, a esposa, ou a sogra. Mesmo que sejam todas a mesma pessoa.
No panorama fúnebre do humor português para as massas, Capitão Falcão é o tal alienígena escaganifobético que por não se moldar ao modelo da telenovela de rir, acaba por não ser visto pelas massas. Não ganha dinheiro, ninguém fica rico nem compra mansões, mas o público que gosta de entretenimento de qualidade agradece.
E com isto o filme chega ao fim e qual é o meu espanto quando acendem as luzes e olho em redor. Aquele mefítico e peludo maralhal comunista estava agora barbeado, asseadinho, pronto para segurar um carimbo de modo austero num departamento de contencioso mal iluminado de uma repartição de finanças de Guimarães ou Fornos de Algodres. Marcharam depois para a saída, fazendo-me uma vénia respeitosa, como um velho escriba merece. Fui para casa feliz pelos ensinamentos e refrescamentos do Capitão. Aproveitei para comer ainda um pratinho de arroz doce que a minha esposa confeccionou na minha ausência, comprovando que desta vez não terá abusado do açúcar. Uma noite em que este cinto e esta fivela serão poupados ao seu lombo. Deus vos guarde e de vós faça homens. Mesmo que sejam mulheres.
CinemaXunga @Caminhos Film Festival 2015 (em colaboração com a revista Take)
A incógnita é, será que a falta de afluência ás salas garantirá uma sequela?
Isso agora também vai depender muito das vendas do Bluray. Não tenho grandes esperanças.
Era bonito. Eu já cumpri o meu dever patriótico.