Acto 1 – Chinese Demagogy
O Português tentava dormir, anestesiado por um jetlag eterno, quando alguém bate à porta. Manteve-se deitado e tentou combater alguma ansiedade natural para quem está sozinho do outro lado do mundo. “Num hotel não haverá concerteza perigo”, pensou. “Deve ser engano.”. Virou-se para o outro lado, submerso em almofadas numa fofura artificial que só as cadeias internacionais de hotéis sabem fazer. A criar a sensação de que estamos em casa em qualquer local do planeta. Não em casa, Casa. Naquela casa genérica que é o conforto da segurança, a capacidade de manter o ritmo cardíaco numa estável apatia. A mesma razão pela qual as pessoas costumam argumentar que comer no McDonalds é a opção mais segura quando se viaja para o estrangeiro. Pode ser merda liofilizada e infectada a gorduras trans, aminoácidos sintéticos e cancros fulminantes, mas tem sempre o mesmo sabor em todo o lado. Aqui, na China, também este pacato cidadão do mundo procurava aconchego nestas almofadas fofas com cheiro a benzeno disfarçado com perfume genérico. Batem novamente à porta, apressadamente. Um ralhete percussionado, como um “levanta-te seu merdas” da batucada. Desta vez sentiu-se um merdas e levantou-se. Dirigiu-se apreensivo à entrada. Um membro das máfias russas ou um assassino do Partido podia ter discordado da sua visão para o futuro dos botões de pulso e preparava-se para lhe limpar o sebo com uma corda de guitarra ou uma sandes de polónio 210. Podia ser da recepção, com um recibo. Os chineses às vezes não têm a mesma noção de prioridade que nós, os tipos do ocidente. Há casas de banho onde se caga em comunidade, sem paredes separadoras. A malta senta-se, caga, fala de negócios, lotaria, novelas e sugestões de especialistas para ver essa verruga nos tomates, limpa o cu e vai-se embora. Garantem especialistas que se poupa imenso em papel e água. Também em tempo e recursos financeiros na construção das infraestruturas de cagar, as chamadas “casas de banho”. As fábricas adoram. Abriu a porta e não havia ninguém. Saiu para o infinito corredor alcatifado e nada. Um quilómetro para cada lado, a perfeita geometria arquitectónica a embocar num ponto. Nada. Onde teria ido o artista? Certamente não era possível correr suficientemente rápido para desaparecer assim. “Pfff”, voltou irritado para dentro. Ao fechar a porta reparou num envelope no chão. Abriu e tinha um postal com umas moças semi-nuas a publicitar uma gama de pneus para SUV cujo logotipo era bastante similar à Pirelli. “Chineses e mamas grandes”, pensou, “algo que não se vê todos os dias por aqui.” Virou o postal e lia-se em letras sublinhadas: VAI VER A SEREIA. A PARTIR DE AMANHÃ HÁ LUGARES DISPONÍVEIS.
“Que merda é esta?”, pensou assustado. Andava há 3 semanas para ver o Mermaid de Stephen Chow nos cinemas e estava sempre esgotado. Um fenómeno curioso que não compreendia. Ninguém compreendia. A imprensa ocidental estava louca com isto. As bilheteiras vazias, os corredores vazios. As sessões esgotadas. Com semanas de antecedência. Uma vez encontrou duas pessoas que saiam de uma sessão do Mermaid. Tentou perguntar-lhes o que estava a acontecer. “Solly no speak engrish”. Coisa bizarra, riam de modo ausente. Nunca mais se esqueceu deste encontrou, passou a lembrá-lo como o Momento X.
Acto 2: À meia noite, ao luar
O que significaria isto? Ver a Sereia a partir de amanhã? De repente as pessoas deixaram de ter interesse? Já há vagas? Como uma mente de colmeia chinesa que teria deixado de permitir ir ver o filme? Uma época religiosa que proibia que se vissem filmes de sereias? “Opá, aqui há gato…”, pensava para si próprio enquanto acabava uns restos de pato com sabor a coelho numa cidade onde os gatos têm vindo a desaparecer e ninguém sabe porquê. Olhava pela janela do hotel e a única coisa que se via na noite escura da Shenzhen eram uma firmes nádegas suadas apertadas contra os vidros num 67ª andar do hotel em frente.
No dia seguinte, após uma ronda de decepcionantes apresentações sistemas modulares de botão de pulso do Sec XXI, voltou a tentar comprar bilhetes para ver o Mermaid de Stephen Chow. Aproveitou uma pausa de pequeno almoço para comprar online. Teve cuidado redobrado por causa do tradutor automático, raramente funciona bem. Da última vez que tentou comprar bilhete para o último Star Trek num dos mais recentes cinemas 4D em cabines isoladas com sofás reclináveis e jantar, acabou com reserva no clube restrito Bambu Africano com encontro marcado com um etíope chamado Dong Kong cuja indumentária era inexistente.
Estavam todos os lugares disponíveis. Comprou 3 bilhetes para ficar à vontade. Apareceu meia hora antes, ninguém. Sala vazia. À hora do filme, vazia. Porreiro, pensou. Pegou no balde e começou a inumana função de mastigar aquele imenso fardo de pipocas. O filme chega ao intervalo e começa a duvidar de tudo. O filme estava a ser terrível, desde as performances aos efeitos especiais. Tudo bem que o Stephen Chow é o chamado ponei que só faz um truque, mas isto é regredir. Bastava que usasse a mesma fórmula. Muito mau. E os efeitos especiais estavam a ser dignos da publicidade da Coca Cola nos Jogos Olímpicos de Seul. Além disso há sérios problemas como… Estes seus pensamentos de qualidade de humano superior são interrompidos por alguém que está sentado na sala ao lado. Um asiático idoso com cara marota. Fuma abundantemente um cachimbo que deita cheiro a camião diesel dos anos 70. Encardido, como se se tivesse atirado de uma carrinha em andamento para um penhasco de modo a escapar à morte certa. Cheirava a urina e morte. “Olá”, disse sorrindo. “Bem vindo ao cinema. Bela merda, hein?”. Continuava a sorrir de modo maroto e a falar português perfeito. Bem, não se podia dizer que fosse perfeito, era um sotaque alfacinha. Percebia-se, vá! “Já percebeu o que está a acontecer?” Ria e fumava. A abundante espiral de fumo negro e de aspecto radioactivo não parecia incomodar os detectores de incêndio. E este era o fumo que lhe saía dos pés, imagine-se o que vinha do cachimbo.
Depois de um momento de choque, o velhinho fedorento continuou. “As vendas de bilhetes em milhares de salas pelo país foi um esquema de lavagem de dinheiro por parte das máfias. Compram salas atrás de salas, pagam em dinheiro. O dinheiro entra no circuito da sala que normalmente é propriedade dessas mesmas máfias. Por isso é que foi o filme mais visto de sempre na China e na realidade quase ninguém lhe meteu a vista em cima. O próprio filme foi financiado pela Máfia e o Stephen Chow nem se preocupou. Não valia a pena. Estava pago. O acordo com a máfia cobria a produção, o acordo com Netflix outro tanto e o contrato para três filmes no futuro. Sem necessidade de correr riscos, fez uma enervante merda atópica e repugnante para fanboys. E esses ainda não o viram e já dizem que é bom, o melhor.” Lambeu os lábios com uma língua bifurcada e um som viperino. Uma explosão de fumo fez desaparecer quase por completo o velho asiático. Uma cauda reptilia foi a única coisa que se viu a desaparecer entre os bancos. O português sentia o coração explodir. “Que… merda… é esta?!…” pensou pausadamente, nos momentos em que o cérebro era oxigenado. Acalmou e virou-se para o ecrã incapaz de se abstrair do que tinha acabado de acontecer. Expirou ruidosamente ar pulmonar. A forte cadência da respiração parecia ser insuficiente para oxigenar o sangue. O peito ardia e a garganta estava cada vez mais seca. Temia morrer de ataque cardíaco e a cara o velho não lhe saía da cabeça. Acalmou finalmente. A sala fica escura. Silêncio.
“Inclusivamente, numa das salas…” voltou o velho mal cheiroso a falar do outro lado. Rodou a cabeça com tanta força que estalou o pescoço. “...houve uma orgia organizada por uns executivos da Disney Europa que tinham o tal fetiche de foder no cinema. Como toda a gente, suponho!” Indiferente ao olhar de pânico do Português, o velhinho puxou demoradamente pelo cachimbo e continuou a debitar informação de modo unilateral. Por uns momentos o cérebro do português bloqueou e só o via a mexer os lábios em câmara lenta. As faces iam distorcendo, revelando uma cara que de lagarto humanóide. Depois os contornos da face rodavam em caleidoscópio e eram 100 expressões de pessoas diferente até voltar ao lagarto. Com peles descaídas e picos venenosos a sair das costas. “…e acabam por iludir o público que nunca chega ver o verdadeiro cinema na vida. Um destes realizadores iranianos… “. Aperta-lhe o braço com força deixando uma marca de uma mão animalesca, com garras afiadas e membranas interdigitais. Cheirava a carne queimada e o seu braço largava fumo, como um cavalo marcado a ferros. Começou a perder os sentidos. Ainda conseguiu apanhar “… Tisary McMelnoid havia feito uma obra prima que foi destruída pelos média. Os mesmos que, sabendo desta tramoia do Chow e da Sereia, optaram por ignorar. Trabalham todos para o mesmo. Sabemos todos qual é, não é? Não preciso de dizer nomes. Adiante. Nessa noite, untado em margarina…” Perdeu os sentidos.
Acto 3: O lado negro é a aurora do tempo
Acordou deitado entre as cadeiras no escuro. O filme ainda não tinha terminado. Levantou-se e viu os últimos 10 minutos. Coisa terrível. Má representação, aspecto amador, miséria total. Não ficou arrependido de ter adormecido. O filme acabou, rolaram os créditos e lembrou-se do pesadelo que lhe havia consumido três quartos de hora de filme. Que coisa bizarra, terá sido alguma coisa que comeu? Ia a sair e sentiu um ardor no braço. Puxou a camisa e tinha lá a marca queimada da mão do réptil. Ainda cheirava carne assada. Saiu meio atordoado, completamente imerso num pânico que lhe fazia sentir a cabeça a rebentar. Cambaleante. Encostou-se a um pilar e tentou relaxar. Olhou em frente. Dois cavalheiros iam a conversar. Chineses que parecia ter já visto. Foi aí que se viu a si próprio ao fundo do corredor. “Mas que merda esta?”. Escondeu-se atrás do pilar e viu o desenrolar da cena por um espelho na parede. Ele próprio a perguntar aos chineses o que estava a acontecer e eles riam em escárnio e respondiam “Solly no speak engrish”. Respirou fundo. “Meus Deus, o Momento X!”.
Seguiu-se a si próprio e reconheceu o que estava a acontecer. Foi o caminho que fez de volta naquele dia que foi ao cinema e estava tudo esgotado. As mesmas interacções, as mesmas pessoas. Aquele rapaz que chorava com uma camisola dos Angry Birds, uma performance de rua em que um Vietnamita tocava viola e interpretava Creep dos Radiohead que soava a “Ai má Clip, ai má hindú”. Seguiu-se a si próprio até ao hotel. Ficou na rua à espera. Esperou pela noite e tentou entrar. O cartão do hotel funcionou. Ninguém reparou que entrou uma segunda vez. Para os chineses somos todos iguais, pensou. Subiu ao seu andar. Chegado ao corredor sentiu que deslizava ondulante, como uma serpente. Ao chegar à porta sentia-se bem, sentia-se sem medos, capaz de enfrentar o mundo. Confiante, um novo homem. Olhou orgulhosamente para o ventre e corpo de réptil. Soltava gosma transparente que desaparecia de imediato das superfícies. Olhou para a porta do seu próprio quarto, onde estaria provavelmente a dormir lá dentro e percebeu o propósito de tudo.
Pegou num panfleto de um espectáculo de porno-vaudeville que lhe deram com o bilhete. Tirou também um envelope e uma caneta. Escreveu “VAI VER A SEREIA. A PARTIR DE AMANHÃ HÁ LUGARES DISPONÍVEIS. “ e bateu à porta.
Brilhante!