Desde 24 de Junho de 2003

E o Netflix português? (o estado da nação)

netflix

Todos os meses aparece um paneleirinho no telejornal com uma resma de folhas, listagens de impressoras matriciais em papel contínuo, a dizer que o mundo está mal e os lucros caem porque Portugal esconde o pior antro de pirataria de que há memória no planeta nos últimos 1000 anos. Que não consegue pagar as prestações dos BMWs e das casas do Algarve. Que se fosse ele a governar, mandava enforcar mil putos que fazem downloads “ilegais”, para dar o exemplo, e que devia dar em directo na TV no Zig Zag da RTP2 para as crianças aprenderem que piratear conteúdos pode correr mal. Esse mesmo paneleirinho é mais tarde chamado ao tribunal onde apanha um puxão de orelhas porque violou quantas leis existem de privacidade e as suas bases de dados não obedecem a uma única directiva da comissão nacional de protecção de dados. Que afinal até usou software pirata para elaborar os resultados porque “desconhecia que o Office era a pagar”. Esta última parte já não passa no telejornal das 20h porque não tem o glamour necessário para meter desdentadas de 91 anos a elaborar opiniões baseadas em preconceitos sócio-culturais colonialistas e orientações católicas pré-concílio vaticano segundo. E com isto fica a ideia de que somos todos uns ladrões que não querem pagar a magnifica qualidade e variedade de produtos de preço acessível que o mercado nacional nos disponibiliza em prol de uma nação desenvolvida sob a batuta da excelência artística. A verdade é que isto é a mais vil mentira. Um grupo restrito de distribuidores quer extrapolar os lucros oferecendo horríveis produtos a preços pornográficos e querem que o público os consuma à força, sob pesada ameaça, apoiados por um sistema que os protege e obriga o seu povo a empobrecer para que estes tipos possam brilhar na bolsa, nas reuniões com as empresas mãe e naquelas reuniões secretas onde invariavelmente alguém acaba voluntariamente a oferecer uma rodada de felácio*.

As empresas de distribuição de conteúdos em Portugal não têm o direito de se queixar de pirataria por parte dos cinéfilos nacionais porque a maneira como fazem o seu negócio é baseada neste desonesto modelo de pilantragem. Vamos lá analisar, do ponto de vista da sétima arte, o que é que esta malandragem nos tem para oferecer. Tenham sempre em conta que eu sou de Coimbra e que não tenho as opções dos modernaços habitantes da metrópole que podem disfrutar da Cinemateca sem terem que pagar bilhete de ida e volta de Alfa Pendular e uma eventual noite em hotel porque à meia noite nem os comboios cá chegam.

Cinema em Sala.

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Actualmente a distribuição é monopolizada por um grande grupo que está cá para fazer dinheiro. Não há incentivos à qualidade e como tal é só encher os multiplexes (que também são deles) com filmes genéricos de Hollywood sem uma única qualidade que os redima. Já nem nudez lá metem, a pensar nas crianças. Crianças essas que não podem ir ver um par de mamas ao cinema acompanhados pelos pais, mas que em casa sozinhos no PC podem desbravar livremente os terrenos da necrofilia animal sem supervisão. Os bilhetes são caros. Se for um filme em 3D praticamente duplicam. Uma família que queira levar 3 filhos ao cinema, ver um filme infantil 3D e queira pipocas paga pela ousadia 50 euros sem se esticar muito nas bebidas. 10% de um ordenado mínimo queimado em duas horas. Os incentivos não existem. Se por um lado estamos sempre a levar com a converseta de que a cultura é um direito e as crianças devem ser educadas com conteúdos de qualidade e adequados à sua faixa etária, por outro somos roubados por cada vez que queremos, legalmente, dar algum momento de lazer aos nossos filhos, que tanto tempo passam sem os pais para que eles possam ganhar o suficiente para que não passem fome. Eu tenho 3 filhos, por sinal.

Venda Directa

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Ora aí está mais um belo beco sem saída. Criou-se uma ideia na populaça de que devemos comprar os filmes. Porquê alugar (quando se alugava) por 2 ou 3 euros por 1 ou 2 dias se podemos ficar com ele para toda a vida por 15? A ideia é boa, do ponto de vista puramente matemático. 3 euros por 1 dia Vs um décimo de cêntimo por dia se ficar na nossa posse para sempre. Infelizmente alugado ou comprado só se vê uma vez. Às vezes nem isso, é apenas o frenesim consumista do momento. A oferta de títulos baratos é miserável. Nos hipermercados há edições a 1 ou 2 euros de filmes de qualidade questionável e edições pelintronas. Não há variedade de Bluray, só os blockbusters. Importando só online, porque nas lojas da especialidade devem pensar que ainda não temos internet nem cartão de crédito. Uma família vê-se confrontada com decisões difíceis ao optar por gastar 49 euros num pack Fellini ou carne para uma semana. Mesmo a malta sem problemas financeiros equaciona isto seriamente, porque quem não o faz vê rapidamente as chatices bancárias a bater à porta. É certo que não tem que haver incentivos, mas também o é que não somos obrigados a comprar.

Canais de cinema

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Os fornecedores de TV por cabo e satélite tem canais exclusivamente para cinema. No caso da Zon até os têm usado como arma de arremesso porque podem oferecê-los ou vendê-los baratinhos. São deles, têm essa liberdade. É certo que os TVCines não são maus. São repetitivos, é certo, mas isso são todos os canais de cinema desde 1978. E nem são caros. Já vêm oferecidos em packs mais altos e às vezes por mais 4.99 ou 9.99 também os despacham. O baixo preço é uma falácia comercial, porque são 4.99 em cima de 49 ou 55 ou 62. Todos os meses aumenta e ninguém ainda percebeu porquê.  Quando cometem um erro qualquer, técnico ou contabilístico, oferecem 6 meses para a malta não barafustar. Só que nos dias de hoje a malta não tem paciência para se sentar à espera que comece o filme. As gravações nas boxes só se fazem no primeiro mês até se perder a paciência e aquela merdice de uma semana para trás só dá jeito quando o conteúdo que queremos aceder passou à uma semana e um dia.  Em todo o caso o melhor é o Hollywood e vem até no pack mais básico.

Aluguer / Clubes de Vídeo

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Os clubes de vídeo que nos fizeram mais homens na adolescência deixaram de existir. Entrar num espaço, passar duas horas a escolher, ter arrependimentos de última hora e levar um que afinal é uma bela merda, discussões com a namorada à frente de estranhos porque a comédia romântica e o filmes de zombies são incompatíveis, ir com amigos e ninguém chegar a nenhuma conclusão e todos se chatearam, a vergonha de alugar um porno para se ser enxovalhado pelo dono do clube no momento da verdade. Ou ter que os escolher de um dossier com capas e categorias como “Gordas”, “Cavalos” e “Putas brasileiras”. Tudo isto acabou. Isto faz parte de uma época pré-CIA, pré-NSA, pré-obesidade infantil, pré-complô da sociedade secreta  homossexual do Vaticano que afinal controla tudo. Tudo isto se foi. Clube de vídeo agora é uma lista minimalista de filmes americanos na box da Zon e da Meo que o pessoal escolhe para fazer streaming manhoso, com menos qualidade que os que se sacam do Piratebay e com quebras para buffering. Nunca na minha vida aluguei nenhum desses e seja cão se alguma vez o farei.

E cá não há Netflix…

Pois não, não há Netflix. Por isso é que serviços de streaming pirata como o wareztuga ou o ratoTV proliferam. Milhares de filmes recentes e de qualidade, legendas ou falados em PT, séries organizadas e sempre actualizadas. Registo do que vimos, quando vimos e do que achámos. Melhor ainda, em qualquer dispositivo. TV, telemóvel, computador, tablet, leitor de Bluray, dispositivos android que encaixam em qualquer lado, etc. Mais importante, addons para XBMC. Enfim. Eu não sou gajo de pagar excessivamente por conteúdos, mas facilmente aderia a um serviço como o Netflix. Por 6 ou 7 euros, como pagam os americanos com o seu nível de vida duas ou três vezes superior ao nosso, são amendoins para se ter uma infinidade de séries, filmes, documentários, estatísticas de visualização, dezenas de plugins que permitem ver estes conteúdos em qualquer dispositivo, organização e  social media dentro do serviço para compara com os amigos. Quem diz Netflix diz outra coisa similar.

O modelo é simples. Conteúdo com mais de um ano ou dois é baratíssimo e é bom na mesma. Comprado em bulk e vendido em massa é negócio que rende. Esta ideia de que o que é da semana passada já é velho e desinteressante é pobreza de mente. Como aquela rádio que só passa música dos últimos dez anos, como se alienar Led Zeppelin, Queen, Beatles (The), Pink Floyd, Rolling Stones ou mesmo Heróis do Mar, Peste e Sida e Censurados, fosse uma coisa positiva. Sinceramente, era dar um tiro na nuca ao gajo que se lembrou disso.

sinceramente

Aquilo que Portugal tem neste momento é uma amálgama desconexa de tralha sortida,  completamente desligada da realidade tecnológica do momento. A Blockbuster foi à falência por não ter se ter adaptado aos tempos e em Portugal só suportamos esta pouca vergonha porque não há alternativas. O que há é o mesmo que havia em 1989, só que mais caro. Na cabeça das grandes mentes das distribuidores andamos todos a ver CRTs de 27 polegadas com aspect ratio 4:3. Continuam a insistir num modelo que definha porque os 7 biliões de habitantes do planeta não acatam as ordens de consumo de meia dúzia de tubarões. Canalhas.

*uma rodada de felácio: o corrector ortográfico, além de insistir na merda do acordo, ainda sugeriu “uma rodada de Felício”. O que não deixa de ser engraçado, note-se.

11 Comments

  1. Ricardo JM Vieira

    Eu também gostava de dar um tiro na nuca dos gajos dessa tal rádio e da malta das televisões que insistem em transmitir em 4:3.

  2. pedro

    O objectivo deste texto não incentivar que se dêem tiros na nuca, mas se tiver que ser que seja em quem merece.

  3. His_dudeness

    Está bem visto…
    Mas e depois? Temos oferta vinda de outras bandas… sejam warez tugas ou não… preocupado em (não) providenciar lucros a empresas galifonas tugas? Eu não!
    O mesmo que apontas, aplica-se à música.
    Ardam até ao chão.

  4. Pedro

    Como sou um desses miseráveis que trabalha em call center por 600 €, cortei com quase tudo, nem pensar em ir ao cinema, teatro, comprar livros ou BDs. Por isso é que a Internet é a melhor invenção de sempre! Em vinte minutos tomei conhecimento do Garth Ennis e do seu “The Boys”, e tinha retirado a colecção completa em *.cbr. Impensável (infelizmente, e digo MESMO infelizmente) comprar as edições originais, lá se ia metade do meu rendimento para o mês.

  5. Ill_Grazza

    E Deus nos ajude se queremos um niquito de “eye candy”… IMAX para 2 pessoas=21 Euros!

  6. Edgar Ascensão

    O Clube de vídeo morreu? Não. Basta estar em minha casa. Apetece-me ver filme X, é só ir ali ao canto… Por isso é que quero ter tudo gravado. Ou porque sou um materialista da merda .

  7. José Silva

    Há muito tempo que não lia nada tão bem escrito: sarcástico, bem-humorado e contundente, à boa maneira de Eça.
    Ri-me com gosto, parabéns.
    jss

  8. Mª João Nogueira

    Estou com o José Silva…… tenho lido muita coisa sobre esta temática (e escrito, eu própria, algumas dessas coisas), mas há muito tempo que não lia nada tão bem escrito e simultaneamente tão divertido 🙂

    Já segui a última instrução do post 🙂

  9. pedro

    Rodada de Felício?

  10. Mª João Nogueira

    Be Sociable, Share! 🙂

  11. maria inês

    Ontem ligámos a tv ao computador e durante mais de 3 horas estivemos entretidos a ver um filme indiano por streaming com direito a enquadramentos socioculturais e algumas falhas de ligação.

    Temos Netflix, alugamos filmes e séries na biblioteca por 1 ou 2 tutas e comprámos uma cópia do filme. Por azar o nosso dvd não tinha legendas e só um de nós falava malaiala, procurámos no Netflix e na biblioteca sem sucesso, e acabámos por recorrer ao streaming por ser a única alternativa.

    Sobre o que escreveu, era de pensar que facilitando a vida aos consumidores as distribuidoras ganhavam mais clientes. Preferindo espremê-los até ao tutano não é de admirar que se recorra à pirataria.

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