Mentira, o conceito que sustenta os pilares das sociedades desde o nascer dos tempos, o conceito que permite que a frágil estrutura de moralidade e bons costumes não desabe sobre si mesma, engolindo para sempre o mundo na noite eterna da miséria humana. Quem não tem nada a esconder ou diz não saber mentir é, só por si, um mentiroso profissional. Mas como seria um mundo sem mentira, um mundo onde a honestidade é a standard cruel sob a qual as pessoas carregam o seu enfadonho quotidiano? Um mundo sem imaginação, sem ficção e sem a mais pálida centelha de engenho? Ricky Gervais disfarça a sua obra multidimensional de comédia romântica, tão querida pelo grande público, o mesmo tempo que enraba todos os valores morais, políticos e religiosos da civilização ocidental no mesmo processo.
Eu disse enrabar? Na realidade eu queria dizer criticar. É a chamada “euforia do primeiro parágrafo”. Mas ainda assim a metáfora forte pode ser interpretada como “crítica violenta”.
Gervais sabe aproveitar o seu engenho e a estrutura sketch britcom para construir uma sociedade utópica onde a mentira não existe até que uma pessoa a inventa, usando-a a partir desse momento para controlar o seu meio a seu favor e influenciar os acontecimentos no sentido de atingir os seus objectivos. Pode ser conquistar uma miúda, inventar uma religião ou, porque não, dominar o planeta.
O conceito é perfeito e a passagem do projecto à obra também não se saiu mal, mas há durante todo o filme uma fina camada translucida de desconforto e silêncio incómodo que começa por ser acessório à narrativa e acaba por soar a exagero lá para o fim. Ao contrário dos seus papeis mais notórios, Gervais interpreta agora um homem normal num contexto anormal.
Há um desfile de celebridades megalíticas de reconhecido sucesso universal a interpretar pequenos papéis, cameos em que são quase irreconhecíveis, como que a piscar a querer participar naquilo que muitos pensam ser uma obra maior que o futura abraçará como clássico. Não é de todo um mau filme, longe disso. Mas de Ricky esperava qualquer coisa mais suculenta.
Tenho realmente pena que com o evoluir da trama a facção “filme de gaja / comédia romântica” acabe por ganhar terreno ao exercício de pura imaginação distópico, mas o filme precisa do sucesso e os envolvidos precisam de pagar o infantário às suas crianças, os seus créditos bancários e ocasional orgia de putas e cocaína.
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