1991, Agosto em Monte Gordo. Tinha acabado de recuperar a consciência daquilo que vim mais tarde a saber ser um black out de 21 horas. Parecia ser uma festa de Verão e milhares de respeitosas donas de casa vibravam libidinosamente ao som de uma banda em palco. Demorei algum tempo a perceber o que se passava, o som enrolado em flanger e um forte sabor a laca Fiero que parecia escorrer em bica pelo esófago não ajudavam a melhorar a percepção. Cedo percebi que os Trio Odemira tocavam Anel de Noivado e fui apanhado desprotegido no meio das suas harmonias hipnóticas e na execução perfeita de uma música que já na altura era um velho clássico. “Inundada no seu pranto. O seu vestido vai molhando, Ao chorar de amor por mim”, cantavam imperturbáveis pelos gritos histéricos, desmaios e apelos ao deboche adúltero. “Faz-me um filho”, gritava uma octogenária semi-nua estranhamente atraente que parecia acariciar-se ao meu lado. Não sei se foi do álcool, das drogas ou de uma cataplana de peixe que não me caiu nada bem, mas senti um capacete de eletricidade estática a massajar-me as têmporas, como tentáculos de ondas alfa e impulsos de telequinese, e os edifícios pareciam ondular ao ritmo dengoso dos baladeiros alentejanos. Anos mais tarde, depois de ter visto recusada uma proposta de tese de final de curso sobre os Trio Odemira e das terapias de eletrochoque se terem revelado inúteis para apagar esta memória parasita, aprendi a viver com ela e hoje vou partilhar convosco o potencial cinematográfico de tão melosa balada.
Anel de Noivado tem um poderoso motor narrativo que ficou de fora da letra, uma vez que o Trio se ficou por alegorias, contornos fotonovelisticos e frases tipicamente papa-velhas. A verdadeira história por detrás deste megadrama? Reza a lenda que a música (canção) se baseia numa história verídica. Um jovem casal de namorados loucamente apaixonados (pois claro!) estava em fase de noivado quando o rapaz foi chamado para combater no ultramar. Passou lá uns anos e a certa altura deixou de dar notícias. Chegou à aldeia a notícia de que o jovem tinha morrido heroicamente em combate e não mais voltaria à sua amada. Ora, nos anos 60 (ou 70), gaja solteira com mais de 23 anos é bacalhau seco que já não vai menstruar o suficiente para ter 8 filhos e toca a casar a garota com o pretendente número dois. Mas nas vésperas do casamento eis que o noivo original aparece, crispado pelos horrores da guerra e agastado pelos dezassete tipos de sífilis e febres gonorreicas que contraiu em África. Vai ao casamento daquela que foi a sua amada e ambos se encontram “estava ela já casada, a mulher que eu adorei”. Desejou-lhe que fosse sempre feliz e separaram-se em pranto profundo com múltiplas camadas de drama e certamente uma noite de núpcias com sexo pouco inspirado.
Teria sido o pretendente número dois a mexer os cordelinhos para que a miúda lhe viesse cair nos braços? Teriam as cartas ficado pelo caminho vítimas de um carteiro incompetente, um sistema de distribuição falhado ou à falta de coragem da noiva em dizer que ler lhe dava seca e preferia ver as imagens das fotonovelas eróticas suecas em que “membros latejantes túrgidos” exploravam regularmente “cavernas húmidas do amor”? Ou poderia ainda ser o noivo original a criar a situação, porque teria chegado à conclusão que a miúda era apenas uma sopeira de aldeia com falta de visão global e incapacidade de perceber raciocínios abstratos ou, pior, uma paixoneta pelo seu segundo sargento, um negro de Algés conhecido como o “Pata de Cavalo”.
Assim, do ponto de vista cinematográfico, a felpuda historieta que os Trio Odemira tecem no Anel de Noivado seria apenas o início de uma história que poderia muito bem seguir a estrutura de um Rashomon de Kurosawa, um entrecortado confuso e enganador como 21 Grams ou mesmo a já tradicional inversão total de Memento ou Irreversible. Meu Deus, as possibilidades são infinitas de criar algo com o que o Trio nos deu. Imaginem as sequências de combate em plena baixa de Bissau ou nas estepes do Huambo, a cena do lança chamas num machibombo superlotado, uma dream sequence lésbica quando o nosso herói estivesse sob a influência de morfina depois de quase ter perdido um braço num obus mal configurado, a oneliner final antes de arrancar a cabeça ao seu rival (segundo pretendente) com uma caçadeira de canos serrados à queima-roupa. Cheira-me mesmo a trilogia. Uma prequela, uma sequela. Quem sabe um spin-off ou mesmo uma série de TV das aventuras de uma equipa de profissionais dos CTT que contrabandeavam drogas para as linhas de combates e muitas vezes negligenciavam a distribuição na sua zona natal, o Alentejo.
Posto isto podem-me chamar velhadas e antiquado. Mas se ser antiquado é gostar de ter os testículos acariciados no sentido dos ponteiro do relógio, então sim, confesso, sou um antiquado.Vá, façam lá a vossa mãe (ou avó se tiverem menos de 30 anos) feliz e dancem com a vossa amante imaginária ao som do mais subvalorizado hino da música nacional. Mas vistam ao menos umas calcinhas, porque isto não é Diapasão.
Para a semana: A musicalidade do leitão da bairrada.
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genial…
gostava de comentar este post…mas…mas…
Tenho imenso apreço por essa canção. Digo mesmo que a adoro (eu sei, que tenho fracos gostos). Mas este teu “relato”… pá… criou uma outra luz intensa sobre ela, essa bitch solteirona pelas circunstâncias e que vai casar com outro…
Coitado do triste… o que lhe valeu é o pronto consolo do seu sargento, que segundo foi apurado nas descrições dos outros do pelotão, que ele até parecia ter 3 pernas… e que só os castigava…
Ah,ah!
Oh meu Deus!