Uma das melhores sensações que um cinéfilo pode ter é ver um filme que desconhece por completo e ser surpreendido com uma das mais belas obras alguma vez projectadas num grande ecrã. Aconteceu-me isto com Holy Motors, sugerido por um internet friend aparentemente francês (mas que pode muito bem ser iemenita ou senegalês). Inicialmente não sabia sequer tratar-se de um filme falado em francês, no entanto o assombro foi tal que me vi estupefacto durante duas horas, incapaz do mais ínfimo movimento, no delicado limbo entre o desconforto e o deslumbramento, numa obra que faz fervilhar um caldeirão emocional. Enquanto o cérebro extrapola cenários magníficos como explicação e ramifica a imaginação para terrenos coloridamente psicotrópicos, o cerebelo defende-se do perigo eminente da falta de chão lógico para caminhar. Falamos, portanto, de um filme que nos retira da chamada “zona de conforto” e que nos deixa entregue aos coiotes durante duas horas, nus e frágeis às mãos do hábil manipulador Leos Carax.
Estamos aqui a falar de um filme que vai dividir hordes imensas de pessoas, que tomarão partido de Carax ou pedirão a sua morte na estaca, com Holy Motors não há meio termo. Ninguém pode sentir-se indiferente à provocação de Carax que parece fazer aqui um retrato do cinema actual, em segmentos alegóricos que representam o ciclo de vida de um actor e a relação deste com a industria, com os seus representantes artísticos, com o público, com outros actores, com amores perdidos e com as suas próprias expectativas de carreira. Mais á frente falarei disto numa secção de Spoilers.
Apesar da cena de abertura bastante críptica, a primeira sequência parece levar-nos a crer que estamos perante uma história de um bem sucedido homem de negócios que sai para mais um dia de trabalho. Entra na sua limusine e trata de alguns pendentes. É quando ele pede à sua motorista que lhe indica o próximo encontro que percebemos que as coisas não estão a tomar o rumo que a nossa cliché generator interpretou. Muda de roupa, maquilha-se e veste-se de sem abrigo e vai pedir esmola para uma ponte. Madre de Dios, exclamam os espanhóis nesta parte. Daí para a frente vai interpretando vários quadros aparentemente desconexos e com elevado índice de surrealismo, por vezes fazendo David Lynch parecer um encenador de liceu, com tendência para a pedofilia e alcoolismo. [insulto gratuito alert]
O mais impressionante nisto tudo é a maneira como Carax embrulha a sua obra, estranhamente apelativa, recorrendo a um forte sentido estético e a uma cinematografia exemplar, isolando os segmentos no seu próprio estilo sem no entanto lhe perder o sentido conceptual. O problema, na opinião deste humilde escriba, é o final. O punchline é forte, mas exagerado. É overkill. Nas imortais palavras de uma tia minha “Tanta coisa para depois ir limpar o cú às couves”. Note-se que o filme evoca um conjunto de referências a clássicos da cinematografia francesa, mas um cepo inerte como eu não apanhou quase nenhuma. Provavelmente explicam coisas importantes. Aliás, a densidade de detalhes e pequenos nadas obrigam a múltiplas visualizações que em nada fazem o filme perder esplendor. Exemplo: os URLs nas campas.
Pontos extra para Kylie Minogue, a sempre jovial e fogosa Kylie, baixinha e sumptuosa, nefasta ninfa de capacidades pecaminosas indiscritíveis. Também aparece. Vestida, é pena.
### SPOILERS ###
Holy Motors é um daqueles filmes que não nos sai da cabeça. No final começa uma nova senda, a procura da verdade. A interpretação que não é oferecida directamente, decifrar a iconografia, desvendar as alegorias, encontrar um pouco de paz mental. Depois de fortes discussões nalguns dos mais obscuros locais de culto cinematográfico, a interpretação é aquela que forneci acima. Vejamos as partes.
Todas as sequências representam estados da vida de um actor de sucesso, uns papéis simples e lineares para começar (homem de negócios e pedinte), um trabalhinho para ganhar uma coroas em motion capture, onde se mostra a diferença entre graça do movimento humano e a sua horrível transposição para um CGI genérico, onde se perde todo o erotismo e consequente carga emocional. Depois o papel de freak numa produção com uma musa burra que nem um calhau que serve de decoração, Eva Mendes a ter que aturar a erecção prostética a menos de um metro da sua linda boquinha. Um papel em produção arthouse manhosa em que homens atravessam a cidade a tocar acordeão, o romance musical com a sexy Kylie Minogue, o filme de acção na sequência onde mata outro actor representado por si próprio também e o erro ao aceitar o papel do filme de acção onde tem que matar o banqueiro em que a sua motorista (agente) pede desculpa porque houve um erro. Aceitar este papel foi precipitado e sem nenhum planeamento, como se viu até na sequência abrupta que precede essa cena.
Há ainda o leito da morte, o novo e velho a conviver com amor, filme altamente dramático provavelmente a fazer-se ao oscar pela conversa genericamente dramática. Dica descodificadora: o personagem chama-se Oscar. No final cede ao mais fácil que é fazer uma comédia familiar divertida para ganhar umas coroas, mas que lhe custa fazer. A sua família, chimpanzés, é a maneira que o autor tem para dizer que qualquer macaco poderia interpretar aquele filme. Antes disso há a fase em que o público critica as suas performances, através de um tipo que lhe aparece no limusine (sinal de ostentação tipicamente showbusiness) para dizer que ele perdeu a paixão, já não se empenha com antes e que isso se nota na sua performance.
No final não sei o que se terá passado. Percebe-se que a empresa Holy Motors é a industria (Hollywood?), os motoristas os agentes e os executivos e as limusines falam. Não percebo. Transformers?
Melhor do ano.
Kylie Minogue
Em algum momento saquei que era ele um ator interpretando papéis, mas a noção do todo, e consequente retrospectiva, só fui ter noção lendo as resenhas spoilativas.
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Por que diabos aquelas limos foram falar?
Pessoa indiferente ao Holy Motors, presente!
Há sempre um. 😉
Mas quanto à última cena das limusinas a falarem, não me parece que seja sobre os Transformers. Será sobre a transição do celulóide para o digital. As limusines, como o celulóide (que também “transporta” actores) são vistosas, mas cada vez mais ultrapassadas e obsoletas. Portanto, a última cena representará a esperança que com a transição do analógico para o digital, que se conserve a memória dos filmes e os meios antigos.
PS: A crítica ao novo Total Recall fez-me o dia. 🙂
Mais uma pessoa indiferente ao Holy Motors, presente!
Li comentários que as cenas com as limusines se remetem às animações da Pixar numa crítica ao excesso de artifícios visuais, efeitos especiais e a substituição de atores de “carne e osso” por computação gráfica (leia-se Avatar). E me parece ser um filme dentro de outro, ou seja, quando Leos Carax adentra o cinema ao início, depara-se com um cinema lotado de espectadores “robotizados” assistindo um filme chamado.. Holy Motors.
Melhor do ano (2)!
Adormeci a meio. Fiquei-me no segmento do assassino, e não tenciono tentar novamente.
sinceramente vi o filme com bastante atenção e mesmo assim não percebi nada do filme!!!!