Desde 24 de Junho de 2003

Citizen Kane – O maior plot hole da história do cinema

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Quando era um jovem a morar em casa dos meus pais fui à padaria comprar dez bicos e um pão de meio quilo. Umas vizinhas que estavam à minha frente falavam da morte de dois homens na semana anterior. Dois homens que morreram num acidente bizarro em condições aparentemente inexplicáveis. Dizia uma delas “Eles iam a discutir porque um deles andava amigado com a mulher do outro. Então ele meteu-lhe as mãos aos colarinhos e disse “Eu mato-te, miserável, eu mato-te!” e foi esta luta que os fez capotar e morrer”. Todas as outras senhoras ficaram num choque silencioso, horrorizadas com a tragédia que tinha bafejado morte e angústia na nossa aldeia. Eu tive que perguntar onde é que ela ouviu tal disparate, uma vez que as únicas pessoas que lhe poderiam ter contado sofreram morte imediata nesse acidente. No dia seguinte foi dizer à minha mãe que me tinha visto a fumar com uns drogados, em vez de estar nas aulas.

Um plot hole é uma falha na consistência da narrativa que inviabiliza por completo lógica do filme desse ponto em diante. São contradições que podem ser suaves ou graves. Imaginem um filme em que um tipo diz que tem prisão de ventre há 10 anos. De repente um flashback de há 5 anos e há uma cena em que ele sai da casa de banho depois de uma farta e fumarenta cagada. Isto é um plot hole levezinho. O realizador pode alegar que ele era mentiroso e inventou a parte da prisão de ventre. Como tudo no cinema (e na Internet) é algo que facilmente gera inflamadas discussões de fazer rebentar uma veia na testa. Há, no entanto, plotholes de tal gravidade que o simples facto de se ter conhecimento dele leva a que se encare um filme de maneira diferente daí em frente.

Os plot holes podem ser de 3 tipos, conforme os nossos dedicados amigos do site http://www.movieplotholes.com/ tiveram a gentileza de recriar em gráfico que publico aqui sem autorização. Chamem a polícia, se isso vos incomoda.

plotholegraphics

O plothole que vos vou falar hoje é de Citizen Kane, esse filme que já foi várias vezes considerado o melhor de todos os filmes. É indiscutivelmente um filme importante, seja pelo uso de grandes profundidades de campo para criar 3 planos de representação em simultâneo, seja pelo ângulos de câmara que ajudam a revelar a importância e personalidade dos personagens em cena, seja porque foi dos primeiros a incorporar um estilo de representação menos teatral e mais próximo daquilo que chamamos a “vida real”, algumas técnicas novas em trabalho de câmara e efeitos especiais ou uma narrativa não linear a fugir à simplicidade que era comum na altura (e ainda é hoje).

Se já o viram sabem do que se trata. Um homem velho e poderoso que tinha tudo morre sozinho e abandonado. A última palavra que diz é “Rosebud” e é esta a expressão que vai catalizar todo a narrativa, com a malta toda à procura do significado de tão enigmática última palavra.

A demanda pelo significado de Rosebud é grandiosa. É, basicamente, o filme. É aqui nesta procura pela verdade que sabemos a história do nosso falecido herói, os vários níveis de cinzento das personalidades e da desgraça que acompanhava aquele homem para onde quer que fosse. O problema, caros amigos que ainda não desistiram de ler este texto, é que ninguém estava com o velho e acabado Kane à altura da sua morte. A cena inicial é simples. Um homem com um globo de vidro na mão. Diz “Rosebud” e deixa cair o globo. O globo quebra-se e o poderoso Kane morre. Entra uma enfermeira, constata a morte e fim de cena. Está aqui, vejam com os vossos próprios olhos.

Mais tarde, no filme, o mordomo dele diz algures numa conversa algo como “He just said “Rosebud” and then he dropped that glass ball and it broke on the floor.” O problema é que esta fala foi lá enfiada a martelo depois de alguém ter chamado a atenção a Orson Welles algo como “Olha lá, caralho, então esta merda toda é à procura de uma palavra que ninguém ouviu? O velho estava sozinho no quarto, como é que as pessoas conhecem as suas últimas palavras? Isso é que me saíste um belo vacão. Se não fosses filho do meu primo Alcindo Welles  que me emprestou dinheiro para criar a empresa de produção, já te tinha posto no barco para Karalhomandu.”

Não me vou armar aqui em Sherlock Holmes do buracos de argumento, porque não reparei na altura em que o vi. Nem nesse nem em tantos outros. Assim como outras pessoas que não obcecam demasiado com os filmes. Mas vá, o importante é que ninguém se magoe.

6 Comments

  1. David Lourenço

    Acho que podias tornar isto dos plot holes numa rubrica 😀 Karalhomandu deve ser bonito nesta altura do ano! Muito bom

  2. pedro

    Não sou muito bom em rubricas. Sou mais ou menos como o Mel Brooks e seu History of the World: Part I.

  3. cine31

    Eu ainda estou à espera do History of the World: Part II.
    Nice post, by the way!

  4. jc

    Hahaha, eu sempre reparei nisso, mas pensava para mim “oh pá, tá mas é calado que os senhores professores dizem que este é o melhor filme de todos os tempos, logo és tu que não percebes nada”.

    Finalmente, posso dormir descansado. Tantas noites perdidas em vão…

  5. natalia

    Nice post, hehehehe

  6. Montalvão

    Esse da cagada do constipado não me parece plot hole. O sujeito pode ter prisão de ventre severa, mesmo assim em 10 anos vai ter que dar algumas cagadas. Estar há 10 anos com prisão de ventre não é o mesmo que deixar de evacuar em tal período de tempo!

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