napoleon

Olá bebé. Não dás uma beijoca ao teu xuxu?” sussurrava melosamente o Sérgio às miúdas no liceu. O intervalo tornava-se assim um laboratório de ensaios que transformariam o Sérgio num comercial de sucesso para os finais dos anos 90. Isto, claro, até uma grave crise de consumo o ter levado a aceitar um contrato de rescisão bastante lesivo para os seus interesses, que na ansia de pagar as prestações do BMW o Sérgio se vira obrigado a assinar. O Sérgio gostava do Van Damme e de filmes de porrada em geral. Não gostava quando as personagens falavam muito ou quando passavam mais de 10 minutos sem haver turbulência nos filmes que via. Sentia-se confuso com flash backs e quando alguma situação mais inesperada ocorria numa narrativa menos convencional não era raro o Sérgio perguntar “É um sonho?”. O artefacto do “sonho” era recorrente nas novelas e séries dos anos 80 que permitia avaliar a reação dos  espectadores a mudanças futuras. O sonho é também um mecanismo narrativo de failsafe, uma rede que permite fazer o rollback de um arco narrativo menos bem aceite. O Sérgio gostava mesmo era de coisas lineares. “Há um mau muito mau que aleija meninos e um bom que sabe karaté aparece para o matar, FIM.

Um dia o Sérgio apaixonou-se por uma fofinha que lhe deu a entender que os gostos dele em cinema era amatarruanados o que fazia da sua sensibilidade um ermo esconso onde todo o libido feminino vinha morrer. Sérgio ter-lhe-ia alegadamente respondido que também gostava de outros filmes, não era só porrada. “Ai  é? Quais?” perguntou ela enrubescida de hipsterismo. “Porno?” acrescentou ainda desnecessariamente, numa estratégia de humilhação do infeliz papalvo. Como ela queria mesmo era umas varadas de salsichão ao “ritmo de la noche” continuou a atormentar o pobre rapaz por SMS para ele revelar que raio de filmes tão espectaculares de não-porrada eram esses que ele gostava. Sérgio veio aconselhar-se comigo, velho colega de escola que gostava de merdas esquisitas, ou pelo menos era isso que constava (porque o Sérgio nunca tinha prestado muita atenção a este tipo de pormenores).

Disse-lhe que tinha estreado nessa semana um filme diferente, cuja ambiguidade interpretativa o poderia levar a reconquistar o respeito da ninfa tentadora que lhe atormentava os sonhos. “Vamos ver!”, respondeu prontamente o Sérgio, completamente subjugado por um amor que se preparava para o colocar a passar noites em branco de coração partido a chorar aos som de baladas dos Guns’n Roses e Whitesnake. O amor é cego e quem sou eu para dissuadir suicidas emocionais das sua procura pela felicidade? O Sérgio não perguntou e eu também não lhe disse qual era o filme. Combinámos e lá fomos a uma quinta à noite ver o Mandelay de Lars Von Trier. Entrámos e ele notou a ausência de mulheres. Comentou jocosamente a indumentária da “elite intelectual” que se apressava a desligar os telemóveis como ordenava o anúncio.

Dez minutos filme adentro o Sérgio começa a mostrar sinais de desconforto e aos 15 minutos levanta-se e sai. Passados 5 minutos regressa. Cara e cabelo salpicados de água, como se se tivesse refrescado no WC para não adormecer. É certo que nunca questionei a minha sexualidade, mas as vezes que o Sérgio me chamou paneleiro em plenos pulmões naquela sala de cinema nos minutos seguintes obrigou-me o olhar para os outros cinéfilos com uma expressão de “Não liguem que o meu colega não está bem hoje.” Coisa difícil de fazer com um olho negro e a boca cheia de sangue. Por sorte não foi um dente, foi apenas um coroa. Dava para voltar a colar. Não o censuro por tê-lo feito, porque eu próprio me senti um idiota. Dois anos antes tinha passado pelo mesmo em Dogville, ao convencer uns amigos a não ir ver o Bad Boys 2 para passar 3 horas a ver a Nicole Kidman vestida a correr e a chorar numa cidade pintada a giz num chão de um palco de teatro.

Lars von Trier é assim, um falso profeta que se aproveita desta falha concepcional do ser humano de querer ser mais esperto que o próximo, nem que seja para dizer que percebe a metamorfose da máscara no verdadeiro “Id” de cada um, que no limite a nossa personalidade cede à lei do mais forte, do cerebelo primordial, da sobrevivência pura e dura e da subjugação ao líbido e ao garantir a linhagem dos genes , que na realidade esta violência primordial nunca desaparece fica apenas ligeiramente camuflada com estes analgésicos a que chamamos sociedade. Que somos potenciais homens das cavernas que ousam acreditar que esta coisa da humanidade é mais que uns processos químicos aleatórios geradas pelo acaso. Bom, mas isto é praticamente autoexplicativo, basta esperar pelo fim do filme. Como se alguém alguma vez se vá vangloriar de ter percebido o final do ET ou do “Hush! Mother can hear us, dad, XXIV“.

O Sérgio ainda é meu amigo no facebook, apesar de o manter naquela lista de pessoas que não vêem as minhas publicações, excepto o banner, a foto e as páginas que acidentalmente gosto por manhozices relacionadas com a falta de ética comercial desta rede social. Pelo que percebi a gaja dos filmes que lhe andava a foder a cabeça já tinha namorado, um delegado de gama de entrada do Bloco de Esquerda que pensava que aquilo era só droga e mais tarde se mudou para o PSD quando percebeu que o cargo envolvia algum trabalho físico.