Crianças, juntem-se aqui que hoje temos história. Coloquem os vossos chapéus de papel de alumínio e elétrodos de pinça no escroto1 porque vamos viajar no tempo. Nos anos 80 os filmes de Arnold Schwarzenegger era um evento anual que nenhum teenager sedento de sangue e carnificina podia perder. Numa época sem Internets e com as revistas estrangeiras de cinema a custar meio ordenado mínimo, a criançada passava os dias a lamber os cartazes nas salas de cinema. Cartazes que às vezes chegavam a ter mais de um ano de antecedência. Tanta a antecedência que há casos de filmes mudaram entretanto de nome ou outros que nem chegaram a ver a luz do dia. Nestes tempos negros de incerteza e falácias comerciais, o conceito de “Filme novo do Schwarzenegger” era uma âncora de esperança, o quente conforto de algo que não nos ia falhar, um segundo lar… O “Filme novo do Schwarzenegger” era tão certo como apanhar umas valentes bofetões depois de chegar a casa às 20h cheios de lama e com queixas de 23 vizinhos acerca de alegada destruição de propriedade alheia e de por em risco a integridade sexual das suas filhas (essas galdérias). Isto para dizer que no ano do senhor de 1988 andámos todos eufóricos durante 7 ou 8 meses porque ia estrear um novo filme do Schwarzenegger e o elevado bodycount já nos retesava os mamilos de antecipação. Red Heat estrearia no Outono, logo após a chegada das primeiras negativas a matemática.
Uma das primeiras surpresas é que as semelhanças de Ivan Danko com Ivan Drago não se ficam pelo nome. Aparentemente só existe um cabeleireiro de bisarmas em Moscovo ou então, à semelhança da Coreia do Norte, há uma lista de penteados aprovados pelo Kremlin sendo que apenas um para quem vai visitar os Estados Unidos e a sua cornucópia de infinita democracia, liberdade, cheeseburgers, café take away, lojas de electrónica, Rolexs vendidos na rua por debaixo de extensas gabardines, pistolas em todos os guarda luvas, jovens a dançar breakdance e imitadores de Elvis. E o filme foi espetacular, vibrámos com tanta gente morta e a apatia das forças da lei locais em permitir que um estrangeiro de uma nacionalidade que todos odeiam juntamente com um colega clinicamente tresloucado destruam metade da cidade e matem um milhão de pessoas, culpadas ou não.
Bem, este fim de semana por alguma aleatoriedade do destino apeteceu-me ver novamente este filme. Um buddy cop movie de Walter Hill, praticamente o inventor de género. É um filme bem conseguido dentro do género, a estrutura musculada do buddy cop, com o habitual argumento com as camadas de narrativa e acção desenfreada bem sobrepostas. O que se esperava de um belo filme em 1988. No entanto, visto este anos todos depois há algumas coisas que sobressaem e sobre elas irei expandir-me nos próximos parágrafos.
A URSS, mãe Rússia. Tudo o que o americano comum sabia em 1998 sobre os russos (e a união soviética) era aquilo que a propaganda americana anti-comunismo lhes dizia. E essa cultura espelhava-se bem nos filmes. Este e Rocky IV seguem o raciocínio de que os soviéticos eram um povo oprimido por carniceiros marxistas, que viviam em eterno inverno, existências cinzentas e monótonas, sofrimento constante que facilmente se resolveria com Coca Cola, McDonalds e aquelas meias listadas coloridas sem pé que as gajas usavam para dançar no Fame. E era isso que estes filmes mostravam, uma lição de americanidade para os estimular à revolta, a aceitar o american way of life como standard mundial. É essa a conclusão do Rocky IV, com a esmagadora vitória da América sob o aplauso dos soviéticos que só queriam ter liberdade para comprar cocaína e sex toys para passar uma noite de êxtase com a Brigitte Nielsen. Como o Rocky fazia na vida real. Bom, o certo é que isto mais tarde haveria de se materializar tudo em ocidentalização sob a forma de uma publicidade ao Pizza Hut pelo reformista Gorbachev (o Gorba).
A introdução deste filme é, no mínimo, suspeita no que diz respeito à heterossexualidade da máfia russa. Num país onde a homossexualidade é tratada como lepra, é estranho ver um exército de cangaceiros nus em amena cavaqueira ignorando meia dúzia de jeitosas nuas num jacuzzi que imploram por umas rodelas de salsichão siberiano. É a maneira americana de dizer que os soviéticos são todos paneleiros.
Adiante. Neste filme um dos pontos chave do argumento é, literalmente, uma chave. Durante um tiroteio ali por final do primeiro acto, Arnie fica com uma chave misteriosa em sua posse. A partir daqui todo o enredo roda em volta dessa chave. Os vilões precisam desesperadamente da chave para recuperar uns valores que estão guardados num local só acessível com essa chave. Todas as cenas têm como foco esta chave. Os polícias tentam ganhar a liderança usando a chave como arma de negociação, os maus (como as cobras) retaliam e matam tudo à sua passagem para poder recuperar a chave. Tem quase o mesmo peso narrativo que o anel do Senhor dos Anéis. A puta da chave é essencial para a finalização da trama e as motivações dos personagens são regidas por essa sede de ter a chave, preciosa chave. Quando finalmente os rapazes metem as mãos na chave vão buscar a almejada mala de dinheiro que estava guardada… num cacifo de uma paragem de autocarro. Foda-se, um filme onde se abrem portões à biqueirada, onde se mata gente a meio do dia nas ruas mais movimentadas da cidade, onde toda a gente dá tiros para abrir cadeados porque nos filmes as chaves só servem para o fechar, não há um caralho de um pé de cabra para abrir um cacifo. Um cacifo de lata, como aqueles dos ginásios. Pessoas que derrubam cavalos a murro e arrancam portas de carros com os braços.
E assim chegamos ao fim deste agradável momento. Deixo-vos com multimédia sortida.
Fan Art
Um posterzinho regional (Tailândia?)
E um filme que não sendo este, tem o mesmo título.
1– Ou equivalente feminino.
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