Desde 24 de Junho de 2003

A mortalidade infantil no cinema de terror

frankenstein-1931

Há uns tempos escrevi o post “5 filmes tenebrosos para quem tem filhos” onde apresentei uma pequena amostra daqueles filmes que nos custa a ver a partir do momento em que pequenas e adoráveis criaturas criadas a partir do nosso material genético (opcionalmente) nos tomam conta do quotidiano. Filmes que antes se viam sem problemas mas que agora são difíceis de engolir porque a empatia é umas das características nucleares do que faz de nós humanos. Ora hoje venho falar-vos de algo ainda mais doloroso, filmes onde se matam crianças. Esta situação passava-me completamente ao lado quando não tinha filhos, afinal era mais alguém a morrer no meio de tantos que são apenas personagens de um filme, não é? Pois é! Mas a malta imiscui-se na trama e acaba por levar aquilo a peito, pelo menos enquanto o está a ver e depois de ter filhos é tramado. Para mim são particularmente dolorosos e mais vale um gajo falar das coisas que nos tiram o sono do que absorver tudo e passados uns anos atirar-se para baixo de um comboio ou levar meia procissão à frente com uma Kangoo a 120 km/h na festa da aldeia.

No início dos anos 30 a cinema de terror estava a ganhar peso junto do grande público. O ambiente naturalmente escuro de uma sala de cinema e o som mais poderoso era habitat natural para o terror e apanhava de surpresa audiências habituadas a saltimbancos piolhosos, espectáculos Vaudeville, homens do realejo com os macacos a pedir esmola com uma caneca ou freakshows de mulheres barbudas e anão mais alto do mundo (da mesma altura do gigante mais pequeno do mundo). Com grandes êxitos como o Phantom of the Opera (1925) de  Lon Chaney, Dracula (1931) de  Tod Browning protagonizado por Bela Lugosi, curiosamente o primeiro filme de terror com som, o público pedia produções mais compostas e audazes. Um jovem e arrojado realizador chamado James Whale decide pegar em Frankestein e fazer o mais assustador filme de sempre, o pináculo do borra-cueca. Frankenstein acabaria por ser um filme com um sucesso que se estende à actualidade devido a vários factores que formaram uma espécie de “tempestade perfeita”. O actor principal, Boris Karloff, contava já com várias dezenas de papéis em produções menores e era ainda assim um ilustre desconhecido. De tez escura e habituado à discriminação por ser diferente do típico louro de olhos azuis de Hollywood, Karloff entrou no personagem e criou o adorável monstro que ainda hoje é referência no campo do Frankensteinismo. Aquilo que nos traz aqui hoje é uma cena deste filme, inesquecível para que o viu, que representa um choque emocional que dificilmente se esquece. O monstro recém criado e sem experiência cognitiva, social ou educacional e apaixona-se pelas coisas belas do mundo. Abismado com a beleza da natureza encontra uma menina que atira flores para o rio. O monstro atira também algumas. Parte do princípio que o jogo consiste em atirar coisas belas ao rio, pega na menina e atira-a para o lago onde a vê na mais profunda agonia enquanto se afoga. Esta cena, à altura, terá sido cortado por imposição do estúdio. Se ainda hoje a morte no grande ecrã de uma criança é praticamente inaceitável, nos anos 30 era a maior das heresias. Deu-se apenas a entender que a criança teria sido atirada e mais à frente encontrada e levada para a aldeia, onde se dá início à caça ao monstro. Ora, haveriam de passar 50 anos até essa cena ser incluída numa edição comercial do filme e é essa que hoje comummente encontramos.  A receita do jovem Whale para o mais ténebre de todos os filmes de terror teria funcionado bem demais. Deixo-vos a cena:

Anos mais tarde entra em cena um dos maiores realizadores a pisar o planeta, John Carpenter. O realizador mais subversivo que o mainstream tem para oferecer, mestre em transformar low budget em viçosas produções, detentor do filme mais lucrativo em termos de ratio produção/box office de todos os tempos (Halloween). O seu primeiro filme à saída da faculdade foi Assault on Precinct 13 (1976), um clássico da ultra violência que nos apresenta uma realidade apocalíptica e a total falta de esperança num futuro melhor. Num esquema de western, um motivado grupo eclético de másculos personagens (incluíndo as mulheres) tenta sobreviver a uma noite de violência de um gang pior que as cobras. Ora, antes de se dar início a esta situação chave, uma menina vai pedir um gelado a uma carrinha de venda ambulante. As coisas complicam-se quando o badass principal aparece e lhe manda com um balázio no peito. Não é, de todo, comum ver isto num filme. Mesmo nos audazes anos 70 onde a violência urbana nos states inspirava os realizadores a dar-lhe forte na matança. Eu fiquei de queixo a tremer quando vi esta cena. Apesar de praticamente gratuita, é um momento que nos introduz ao tipo de gente que os nossos heróis (anti-heróis?) terão que enfrentar numa noite bem animada. Fica o video. Aos 3:30. “Táu, vai buscar!”

 

Pet Sematary (1989) é outro exemplo particularmente doloroso. Além do puto morrer ainda é ressuscitado com os resultados que se conhecem: devastação e miséria humana. O filho é atropelado e morre. Um pai consumido pela mais profunda tristeza recusa-se a fazer luto e enterra o filho no cemitério índio para o recuperar. Ele sabe as implicações deste ato e arrisca. Afinal de contas quem não o faria? O filho regressa. Demon Child. Não é o mesmo, só quando precisa de vantagem se faz passar pela doce criança que em tempos brincou no baloiço daquele melancólico jardim. A criança adora bisturis. O bisturis amam tendões de Aquiles. Mata a mãe. O pai tem que dar paz ao seu filho, desta vez tem que o matar. Duplica a angústia, a agonia ameaça nunca mais o abandonar. Enterra a mãe no cemitério. Ela acorda. God damn you all to hell! FIM

 

Vão em paz.

3 Comments

  1. João Marques

    Como é possível só me ter dado conta deste blogue há coisa de 2 dias? Eu que tanto aprecio um bom escarafunchar na xunguice celulóidica não me dei conta da existência deste antro… Um bem-haja para si e para a sua bem-disposta prosa.

    Conte com mais um par de olhos a acompanhar as suas dissertações sobre os filmes que só existem na sua cabeça. Como verdadeiro xunga, já compreendi que mastiga aquele material celulóidico e vomita cá para fora uma forma deglutida fumegante e deliciosa para nosso deleite.

    Atendendo ao tópico, nunca vi o Pet Sematary mas fica o enésimo alerta (até me faz você crer que aquilo é um A Mulher que Viveu duas vezes).

    Não concordo com a gratuitidade da cena do Assalto à 13ª Esquadra. Tal como disse trata-se da encenação de um gang implacável, sem moral (um pouco à semelhança do Mike Myers que mataria aquela criança sem pestanejar a pestana de silicone da sua máscara). E plasticamente a coisa também é elaborada, a encenação da bola do gelado dar origem a uma mancha de sangue tem o seu quê de mestria.

    Uma palavra para o Frankenstein (para não pensar que o desvalorizo), é o melhor filme de sci-fi ponto final sem parágrafo.

  2. VB

    Também sou um recém-pai mas ao contrário do autor do blogue, acho que a filmografia de horror/terror sempre pecou por nunca explorar devidamente este filão. Sejam animais ou crianças, parece que os realizadores se acobardam sempre na hora de distribuir machadada equitativamente.

    É compreensível, ou se faz um filme comercial ou não-comercial. E para os primeiros é necessário não chocar em demasia, não vá algum puto passar-se e desatar aos tiros numa escola..

    Um filme recente que teria ganho muito com isso teria sido o “Annabelle”. Sim, já sei que o filme é uma prequela saca-cobres, mas eu considero que está ali um resultado muito aceitável. Terem terminado aquele filme uns 15 minutos antes, imediatamente após a cena de desvario da mãe teria tornado o filme terrivelmente negro (no bom sentido!). Alternativamente optaram por a “sillyzada” do “foi só um sonho”. Bah!

  3. Alpha60

    Já nos filmes neorealistas, não precisam de matar crianças para criar cenas que destroem qualquer coração que foi pai há pouco tempo… bolas, acho que o Paisan do Rossellini (apanhei-o recentemente na 2), por exemplo, tem uma cena que destrói quem quer que seja… mas lá está, quem se mete com neorealistas e existencialistas, acaba sempre com uma chapada na cara… uma solha bem dada que já se espera mas aparece sempre de forma subtil, e quase, quase sempre dada com os nós das mãos… dasse!

    http://cinecollage.net/images/paisa_b.jpg

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