Há uns tempos escrevi o post “5 filmes tenebrosos para quem tem filhos” onde apresentei uma pequena amostra daqueles filmes que nos custa a ver a partir do momento em que pequenas e adoráveis criaturas criadas a partir do nosso material genético (opcionalmente) nos tomam conta do quotidiano. Filmes que antes se viam sem problemas mas que agora são difíceis de engolir porque a empatia é umas das características nucleares do que faz de nós humanos. Ora hoje venho falar-vos de algo ainda mais doloroso, filmes onde se matam crianças. Esta situação passava-me completamente ao lado quando não tinha filhos, afinal era mais alguém a morrer no meio de tantos que são apenas personagens de um filme, não é? Pois é! Mas a malta imiscui-se na trama e acaba por levar aquilo a peito, pelo menos enquanto o está a ver e depois de ter filhos é tramado. Para mim são particularmente dolorosos e mais vale um gajo falar das coisas que nos tiram o sono do que absorver tudo e passados uns anos atirar-se para baixo de um comboio ou levar meia procissão à frente com uma Kangoo a 120 km/h na festa da aldeia.
No início dos anos 30 a cinema de terror estava a ganhar peso junto do grande público. O ambiente naturalmente escuro de uma sala de cinema e o som mais poderoso era habitat natural para o terror e apanhava de surpresa audiências habituadas a saltimbancos piolhosos, espectáculos Vaudeville, homens do realejo com os macacos a pedir esmola com uma caneca ou freakshows de mulheres barbudas e anão mais alto do mundo (da mesma altura do gigante mais pequeno do mundo). Com grandes êxitos como o Phantom of the Opera (1925) de Lon Chaney, Dracula (1931) de Tod Browning protagonizado por Bela Lugosi, curiosamente o primeiro filme de terror com som, o público pedia produções mais compostas e audazes. Um jovem e arrojado realizador chamado James Whale decide pegar em Frankestein e fazer o mais assustador filme de sempre, o pináculo do borra-cueca. Frankenstein acabaria por ser um filme com um sucesso que se estende à actualidade devido a vários factores que formaram uma espécie de “tempestade perfeita”. O actor principal, Boris Karloff, contava já com várias dezenas de papéis em produções menores e era ainda assim um ilustre desconhecido. De tez escura e habituado à discriminação por ser diferente do típico louro de olhos azuis de Hollywood, Karloff entrou no personagem e criou o adorável monstro que ainda hoje é referência no campo do Frankensteinismo. Aquilo que nos traz aqui hoje é uma cena deste filme, inesquecível para que o viu, que representa um choque emocional que dificilmente se esquece. O monstro recém criado e sem experiência cognitiva, social ou educacional e apaixona-se pelas coisas belas do mundo. Abismado com a beleza da natureza encontra uma menina que atira flores para o rio. O monstro atira também algumas. Parte do princípio que o jogo consiste em atirar coisas belas ao rio, pega na menina e atira-a para o lago onde a vê na mais profunda agonia enquanto se afoga. Esta cena, à altura, terá sido cortado por imposição do estúdio. Se ainda hoje a morte no grande ecrã de uma criança é praticamente inaceitável, nos anos 30 era a maior das heresias. Deu-se apenas a entender que a criança teria sido atirada e mais à frente encontrada e levada para a aldeia, onde se dá início à caça ao monstro. Ora, haveriam de passar 50 anos até essa cena ser incluída numa edição comercial do filme e é essa que hoje comummente encontramos. A receita do jovem Whale para o mais ténebre de todos os filmes de terror teria funcionado bem demais. Deixo-vos a cena:
Anos mais tarde entra em cena um dos maiores realizadores a pisar o planeta, John Carpenter. O realizador mais subversivo que o mainstream tem para oferecer, mestre em transformar low budget em viçosas produções, detentor do filme mais lucrativo em termos de ratio produção/box office de todos os tempos (Halloween). O seu primeiro filme à saída da faculdade foi Assault on Precinct 13 (1976), um clássico da ultra violência que nos apresenta uma realidade apocalíptica e a total falta de esperança num futuro melhor. Num esquema de western, um motivado grupo eclético de másculos personagens (incluíndo as mulheres) tenta sobreviver a uma noite de violência de um gang pior que as cobras. Ora, antes de se dar início a esta situação chave, uma menina vai pedir um gelado a uma carrinha de venda ambulante. As coisas complicam-se quando o badass principal aparece e lhe manda com um balázio no peito. Não é, de todo, comum ver isto num filme. Mesmo nos audazes anos 70 onde a violência urbana nos states inspirava os realizadores a dar-lhe forte na matança. Eu fiquei de queixo a tremer quando vi esta cena. Apesar de praticamente gratuita, é um momento que nos introduz ao tipo de gente que os nossos heróis (anti-heróis?) terão que enfrentar numa noite bem animada. Fica o video. Aos 3:30. “Táu, vai buscar!”
Pet Sematary (1989) é outro exemplo particularmente doloroso. Além do puto morrer ainda é ressuscitado com os resultados que se conhecem: devastação e miséria humana. O filho é atropelado e morre. Um pai consumido pela mais profunda tristeza recusa-se a fazer luto e enterra o filho no cemitério índio para o recuperar. Ele sabe as implicações deste ato e arrisca. Afinal de contas quem não o faria? O filho regressa. Demon Child. Não é o mesmo, só quando precisa de vantagem se faz passar pela doce criança que em tempos brincou no baloiço daquele melancólico jardim. A criança adora bisturis. O bisturis amam tendões de Aquiles. Mata a mãe. O pai tem que dar paz ao seu filho, desta vez tem que o matar. Duplica a angústia, a agonia ameaça nunca mais o abandonar. Enterra a mãe no cemitério. Ela acorda. God damn you all to hell! FIM
Vão em paz.
Como é possível só me ter dado conta deste blogue há coisa de 2 dias? Eu que tanto aprecio um bom escarafunchar na xunguice celulóidica não me dei conta da existência deste antro… Um bem-haja para si e para a sua bem-disposta prosa.
Conte com mais um par de olhos a acompanhar as suas dissertações sobre os filmes que só existem na sua cabeça. Como verdadeiro xunga, já compreendi que mastiga aquele material celulóidico e vomita cá para fora uma forma deglutida fumegante e deliciosa para nosso deleite.
Atendendo ao tópico, nunca vi o Pet Sematary mas fica o enésimo alerta (até me faz você crer que aquilo é um A Mulher que Viveu duas vezes).
Não concordo com a gratuitidade da cena do Assalto à 13ª Esquadra. Tal como disse trata-se da encenação de um gang implacável, sem moral (um pouco à semelhança do Mike Myers que mataria aquela criança sem pestanejar a pestana de silicone da sua máscara). E plasticamente a coisa também é elaborada, a encenação da bola do gelado dar origem a uma mancha de sangue tem o seu quê de mestria.
Uma palavra para o Frankenstein (para não pensar que o desvalorizo), é o melhor filme de sci-fi ponto final sem parágrafo.
Também sou um recém-pai mas ao contrário do autor do blogue, acho que a filmografia de horror/terror sempre pecou por nunca explorar devidamente este filão. Sejam animais ou crianças, parece que os realizadores se acobardam sempre na hora de distribuir machadada equitativamente.
É compreensível, ou se faz um filme comercial ou não-comercial. E para os primeiros é necessário não chocar em demasia, não vá algum puto passar-se e desatar aos tiros numa escola..
Um filme recente que teria ganho muito com isso teria sido o “Annabelle”. Sim, já sei que o filme é uma prequela saca-cobres, mas eu considero que está ali um resultado muito aceitável. Terem terminado aquele filme uns 15 minutos antes, imediatamente após a cena de desvario da mãe teria tornado o filme terrivelmente negro (no bom sentido!). Alternativamente optaram por a “sillyzada” do “foi só um sonho”. Bah!
Já nos filmes neorealistas, não precisam de matar crianças para criar cenas que destroem qualquer coração que foi pai há pouco tempo… bolas, acho que o Paisan do Rossellini (apanhei-o recentemente na 2), por exemplo, tem uma cena que destrói quem quer que seja… mas lá está, quem se mete com neorealistas e existencialistas, acaba sempre com uma chapada na cara… uma solha bem dada que já se espera mas aparece sempre de forma subtil, e quase, quase sempre dada com os nós das mãos… dasse!
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