Porrada!… Esse submundo dos filmes xunga onde me recuso a aventurar. Uma zona obscura do cinema, onde o conceito narrativo implode e os momentos causados pelo vácuo de composição dramática são subtituídos por lutas de contornos irreais e patetice em geral. Há, aliás, rótulos de shampoo mais ricos em prosa do que alguns filmes do Steven Seagal. É desta lama primordial, composta por murros, pontapés, cabeças rachadas e heróis monocórdicos em estado avançado de mumificação que surge um campeão de karaté convertido em actor. O semi-deus da biqueirada.
Jean Claude Van Damme surge nos anos 80 como um dos representantes desta Nouvelle Vague de la Bordoade (a nova vaga da bordoada), movimento contestatário que defendia a substituição da exploração dramática da luz e das sombras por mais bofetadas, numa clara alusão aos grandes mestres que foram Bud Spencer e Terence Hill. Jean Claude criou-se estrela pela Europa, passou por Hong Kong e foi sugado pela trituradora máquina Hollywoodiana onde viria a cair em desgraça, vítima da sua própria estupidez e droga. Muita droga…
Mas eis que em 2008 Jean Claude Van Damme se reinventa, interpretando um personagem ficcional baseado em si próprio. Mabrouk el Mechri, realizador francês de raízes argelinas, pega nesta lenda belga e cria uma história passada na sua terra natal. Explorando a desgraça em que caiu o próprio actor, envolve muitos elementos reais com elementos ficcionais que nos deixa no limbo. JCVD é JCVD num filme chamado JCVD, brincando na fronteira da realidade / ficção que nos atrai como moscas para aquelas luzes azuis que há nos cafés de aldeia.
Surpreendentemente Van Damme revela-se um óptimo actor. Sofrido, abatido, envelhecido, reconhece todos os seus defeitos. Mostra o seu coração ao mundo, débil, impotente perante aquilo que se espera de um action hero. Um coração ficcional, é verdade, mas ainda assim corajoso. Há um monólogo, ao estilo de mea culpa, em que Van Damme se arrepende dos seus pecados e confessa as suas próprias inaptidões. A capacidade de rir de si próprio não é uma qualidade reconhecida na maior parte das estrelas de cinema. Mas Van Damme sentiu que se podia reinventar e, qual Fenix, bater as asas para altos vôos. E eventualmente mais droga…
O guião em si é algo não muito complexo, porque a verdadeira narrativa é a exploração da queda em desgraça de Jean-Claude Van Varenberg (verdadeiro nome) que se vê refém num assalto a uma estação de correios. Situação que é catapultada mediaticamente pelo presença do actor. É filmado na sua terra natal e nota-se o carinho que aquela gente tem pelo homem, apesar dos seus fracassos. Um dos títulos provisórios deste filme é “O Rei da Bélgica”.
Apesar da mensagem de redenção, JCVD (o filme, não o actor) não tem fim feliz e apoia-se num artifício técnico/narrativo bem conseguido que mistura por momentos a realidade com ficção, que nos deixa cair num poço de decepção para rapidamente nos puxar para o patamar da quasi-euforia. Falando em técnica, é cinematograficamente apelativo, com uma fotografia de tons azuis semi-monocromáticos e de contraste rude que amplia a decadência de Van Damme e sentimento de desespero.
É um bom filme que eu ansiava ver há algum tempo, depois de ter visto o trailer num site qualquer da especialidade.Confesso que apesar de saber assim por alto algumas coisas acerca deste senhor, nunca vi nenhum filme dele. Já revi a lista do IMDB e nada, zero ocorrências. Mas vi a biografia no canal Bio. Isso conta?
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