A verdadeira arte do realizador é criar uma realidade diferente da nossa, uma realidade que tem características que permitem que os artifícios narrativos funcionem de modo fluente, que se criem condições para que coisas que possamos achar impossíveis se desenrolem sem problemas. Mais do que criar estas características é levar o cinéfilo a acreditar nisso de modo gradual, sem desconfianças, sem queixumes. Carpenter cria aqui um mundo que aparentemente não possui escadas para andares superiores, escapatórias para peões nas estradas ou a incapacidade humana de mudar de direção em campo aberto. Podia ser horrível, mas um carro com aquele estilo e personalidade absolve-o de todos os pecados e faz-nos sorrir de benevolência mesmo perante o mais impiedoso serial killer.
Não quero com isto dizer que sou defensor árduo do “Suspension of Disbelief”. Longe disso. Odeio esse termo com todas as minhas forças, apenas porque é sempre usado por autores ou fãs de fúria cega em situações em que as narrativas se tornam irreais em demasia para que possam ser assimiladas de modo transparente pelo cinéfilo. Quando algo é idiota demais há sempre um marmelo a atirar com esse chavão. A verdade é que nada é idiota demais, apenas é preciso arte para vender o conceito, para nos colocar dentro do contexto, porque à partida todos queremos ser “enganados” por essa falta de realidade, todos queremos ser absorvidos para esse mundo e apreciar as diferenças com o nosso. É como as mulheres que apreciam sexo e sentem grande prazer o acto sexual, não significa por isso que queiram ser violadas.
Carpenter faz bem essa transição do mundo real para o mundo dos filmes dele. E nem precisa de muito tempo, às vezes bastam 3 linhas de texto antes de começar o filme.
Christine é um filme que lembro com alguma ansiedade da minha infância/puberdade. Quando estreou em Portugal fiz pressão no meu núcleo familiar, mas era demasiado novo e um filme chamado “O Carro Assassino” não era um conceito que os meus pais abraçavam com grande entusiasmo. Tive que esperar uns anos pelo clube de vídeo, onde o aluguei e vi (e revi). Fiquei desiludido porque não era o banho de sangue que esperava. E nessa altura era assim que avaliava os filmes, se tinha banhos de sangue (ou sexo, vá!).
Anos mais tarde, a semana passada, aproveitei para rever. Por algum estranho fenómeno paranormal parece que se voltou a falar imenso de Carpenter. A comunidade mundial começa a achar que é um génio não apreciado no seu tempo e os canais de cinema do cabo parecem estar pejados de filmes dele. Ora, revi então o filme e fui rapidamente transportado (novamente) para o mundo do verdadeiro cinema, aquele cinema que nos faz sonhar, que nos faz perceber porque o amamos. O cinema orgânico e analógico, frontal sem nada a esconder, com texturas, cheiros, materialização de sensações que de outra maneira nunca reconheceríamos. Enfim, a tal essência do cinema dos 80s que é impossível passar a quem não a viveu.
Christine é um filme marcadamente americano. Não pela sua origem mas pelas suas características. A cultura do automóvel do tempo em que Detroit (agora abandonada e queimada) era a capital mundial do automóvel. É a verdadeira humanização do automóvel, capaz de substituir humanos enquanto objecto de afecto. Christine é um automóvel possuído por um espírito maligno. Essa qualidade maléfica passa para o seu dono e juntos formarão uma dupla que não pouparão na vingança mortífera a todos os que lhe fizeram mal anteriormente. E foram muitos, uma vez que ele era o típico “Dork” do cinema teenager dos anos 80.
Tirando toda a envolvência que falei acima, devemos dizer que o filme não é perfeito. Não se explora suficientemente o origem maléfica do carro e do seu espírito e não tem sangue suficiente, como seria requerido num filme com estas características. Aliás, até gostamos que as pessoas morram porque se revelam todos estúpidos demais para sobreviver. Dizem os verdadeiros fanboys que o livro era melhor, que explicava tudo e que foi mal adaptado. Mas não é sempre assim? É algo com que temos que aprender a viver.
É mais uma verdadeira obra do cinema artesanal e bem orquestrado do mestre Carpenter, esse lingrinhas de bigode cuja herança cultural é tão forte que perdoamos os mais recentes desvarios.
PS: Foi adaptado de um livro de Stephen King, mas não me apeteceu alongar sobre isso…
Vi este filme há muitos anos mas marcou-me (como de resto uma série de filmes do Carpenter e algumas poucas adpatações de livros do King). Entre este e o Carrie venha o diabo e escolha (mas é melhor não dizer isto muito alto ou ele vem mesmo) Já agora outros de terror que me marcaram assim antiguinhos e sem saber se já os visionaste: Rosemary’s Baby, The Omen, The Brood e o maravilhoso Dead Ringers que sem ser propriamente de terror é o mais perturbador de todos 😀