Continua a grande dificuldade dos argumentistas do cinema moderno se adaptarem a novas tecnologias. A necessidade de manter os conceitos do cinema tradicional, para não alienar a clientela, e associar-lhe toda a parafernália de tecnologias atuais nas suas tramas é a tarefa mais dolorosa para argumentistas. É muito comum estarmos a ver um filme em que se ignoram completamente facetas tecnológicas da vida atual. A escrita foca-se numa linha de fuga muito concreta para evitar distrações. A malta de humanidades, que escreve os filmes, não sabe usar as tecnologias que tem, quanto mais compreender a complexidade mastodôntica que lhes dá forma dentro das paredes, na atmosfera, no espaço, debaixo das cidades, em centros de dados e dos seus domadores que operam nas sombras. Mas isso não os impede de tentar, com resultados mistos. Se o casual utilizador de telemóvel para ver fotos da ex-namorada em bikini no whatsapp consegue engolir as instruções narrativas, o geek de gama média rebola os olhos para cima e sai imediatamente do transe da suspensão da descrença.
(Há spoilers à frente? Eu diria que sim, mas previsíveis como tudo o resto neste filme.)
Desta vez Steven Soderbergh adapta uma história de David Koepp baseada no conceito tecnológica do assistente pessoal por inteligência artificial. Tarefeiros unidos na causa de inflar mais uma chouriça para plataformas, falam-nos de uma moça (Zoë Kravitz) que sofre de ansiedade social e agorafobia profunda. Trabalha como corretora da dicionário de dados, ajudando o sistema de IA de assistente pessoal, o Kimi, a refinar as suas respostas ajudando-o a compreender melhor a língua humana e as suas nuances subjetivas. A moça, representante de uma fatia cada vez maior da nossa juventude, não sai de casa e luta por construir um estilo de vida em casulo, e apesar das tentativas de contornar este aborrecimento, não consegue. Um dia nos seus afazeres rotineiros, qual James Stewart numa utopia Zuckerberguiana pela janela indiscreta do source code Python, apanha aquilo que parece ser um crime com contornos de violência , talvez sexual, para nos atiçar os sentidos. Tenta sair de casa, com as dificuldades previsíveis, e tenta também comunicar à responsável jurídica da sua empresa o que aconteceu. Apesar da simpatia com que é recebida, já depois do calvário de sair à rua, algo não está bem e começam a soar os “tambores emocionantes”, a trilha sonora que Hollywood usa sempre para enfeitar as perseguições.
E, de repente, um filme que demorou 45 minutos para descrever e construir habilmente um personagem e as suas especificidades, uma empresa de tecnologia com os seus produtos e falhas estruturais não admitidas e uma pequena mas interessante teia de relações é atirada às urtigas em troca das perseguições e rocambolescas acrobacias e tangentes inerentes a este tipo entretenimento a metro. Acabando mesmo com o previsível tiroteio em que uma franzina técnica de controlo de qualidade em software que derrete ao sol e não consegue abrir uma lata de pepinos em picle enfrenta o mais vil gang de assassinos que o dinheiro pode comprar com sucesso, não só curando a sua doença no processo como ganhando uma confiança tal que se antevê um Kimi 2 com ela a libertar prisioneiros de guerra no Afeganistão com um cinto de balas e uma metralhadora de helicóptero a tiracolo.
E estamos assim perante dois incompletos produtos, que juntos não dão um filme, fruto da previsível interferência do estúdio para “ter mais ação”, “umas perseguições com bombos de fundo” e uma luta final com características de alguém que toma a formula do Asterix para se transformar em John Wick, conquistar instantaneamente o amor e ficar curada para uma vida de perfeita felicidade e harmonia eterna.
a não ver ?
Ver moderadamente, sem expetativas