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Nalgas Film Festival – Parte 3

Pedimos a todos os realizadores para nos mandarem um videozinho para servir de introdução ao respetivo bloco. Concordaram e fizemos uns separadores bem catitas com os nossos amigos a debitar conhecimento antes da sua hora. Ricardo Machado, Luis Alves e Francisco Lacerda contribuíram assim para o aconchego especial deste momento. Bigas Luna, infelizmente, não respondeu ao repto deixando-nos pendurados. Falta de respeito daquele espanhol que, certamente, estará a vender caramelos no além.

Por fim veio a resposta do Filipe Melo. “Não gosto de me ver em video. Nem falar. Pode ser um texto?”. Ora essa, aquele jeitosão que toda a genta adora? Como não gosta? “Vá lá Filipe, não custa nada!”. “Népia!”, respondeu. Sem usar a palavra Népia, claro, que é um homem de cultura. E ainda sugeriu “Mando um textinho, pode ser?”. Senti um *gulp* a aparecer-me na garganta na medida em que sabia a resposta à pergunta que ia fazer “E quem vai ler esse texto?”. Filipe finaliza com uma Fatality “Tu!”. “Jesus H. Cristo!”, pensei. “Já me fodeu!”. Acabei por ficar descansado, porque estava quase a chegar o dia e o texto estava esquecido. “Já me safei. Esqueceu-se de mandar o texto. Yey”. Mas no dia 3, na azáfama do festival, vem a Carla Rodrigues encostar-se ao ouvido e diz “Falei agora ao telefone com o Filipe Melo e ele diz que te vai mandar um texto para leres, ok?”. Fiquei um bocado ansioso, estava ali tanta gente, meu deus. Ainda pensei que provavelmente não haveria tempo, havia que seguir com a sessão. *gulp*. Não queremos interferir na cirúrgica calendarização, o Carlos falecia com tanto atraso. Mas a Carla pega no megafone e diz a toda a gente “Hey pessoal, *som de feedback*, o Pedro vai ler o texto do Filipe Melo, Ok?” Ok?”. E ficou assim definido que eu, Pedro, o amigo imaginário de meia internet que tanto preza ficar nas sombras, teria que enfrentar aquela centena e meia de pessoas e ler o texto do Filipe Melo. Colocarei o texto mais abaixo.

Tenho esta foto por cima da lareira

Sleepwak (2018) – Filipe Melo

A opinião mais unânime daquela noite, naquela sala, foi que toda a gente quer ver uma longa do Filipe Melo. Toda a gente lhe reconhece o potencial e toda a gente tem a certeza que seria mais um sucesso. Mas o Filipe entrou por esse meio adentro em meados da primeira década deste milénio e percebeu a complicação destas gestões e das logísticas complexas, principalmente num país que não tem estas rotinas. E cedo se refugiou num mundo onde consegue o total controle criativo e não tem barreiras para exteriorizar as suas visões. Desde o delicioso  escapismo de Dog Mendonça e Pizzaboy até ao existencialismo poético de Balada para Sophie. E ele está tão quentinho e confortável, com reconhecido sucesso, porque haveria de sair para se meter em sarilhos de uma arte que suga recursos e a alma e pouco retorno dá? O amor, claro. E Filipe volta assim ao cinema, para o grande écran, com uma adaptação de uma história sua, Comer/Beber. 

Sleepwalk conta a história de um homem que procura desesperadamente uma tarde de maçã. Um obstinado cavalheiro que não vai a lado nenhum sem a sua tarte de maçã. O tempo passa e o senhor não desarma. A cozinheira já não faz as tartes que ele procura. O que será necessário para arranjar esta tarte? Até onde vai este homem pela sua tarte? E o mais importante, porquê? 

Filmado num delicioso interior americano, os locais dos nossos imaginários cinéfilos, de estações de serviço e cafés com maravilhosos ambientes e melhor luz. E Filipe monta esta cenário com rigor cirurgico, como alguém no topo da sua área o faria. Lentamente nos vai desembrulhando o mistério que há-de deixar o mais empedernido todo meloso e metade da sala em lágrimas. Filipe, meu malandrão. A malta vem aqui com uma reputação a manter e sai com uma madalena arrependida.  

Lobo Solitário (2021) – Filipe Melo

Um radialista veterano, interpretado por Adriano Luz, prepara-se mais uma rotineira emissão noturna na companhia sempre acolhedora da sua equipa e dos seus ouvintes. Ambiente rádio sec XXI, um misto de velha escola com o acompanhamento por internet. Em estilo de plano contínuo, bem executado e tecnicamente irrepreensível. Bonito. O programa interativo, dando a palavra ao ouvinte, é de repente sequestrado por um ouvinte nervoso e agressivo que faz ameaças concretas com consequências bem reais. Adriano Luz tem que desarmar uma bomba em direto, qual António Sérgio McGyver, aos olhos dos seus fãs. A gestão do conflito obriga a que se abra, que se descasque como uma cebola, largando as camadas públicas até chegar ao seu âmago. Ao seu núcleo de fragilidade. Tenso e intenso, profissinalão de aspecto caro. Filipe Melo não há-de ter mais dinheiro que outros realizadores a operar em Portugal, mas sabe fazer valer cada cêntimo. O uso dos meios, a sensibilidade das escolhas técnicas e artísticas, a preparação que imagino ser rigorosa e através do uso de storyboards bem detalhados. Enfim, este moço é um prodígio e não o digo apenas por ser meu amigo. 

Sentia-se a humidade na sala com a excitação que Filipe Melo provoca no público das Nalgas,  esse talentoso artista que é, na verdade, uma Nalga Honorária. O Filipe irá estar lá connosco um dia, amigos. Nem que seja adormecido com clorofórmio e amarrado com aquelas cordas fofinhas que não causam queimaduras. 

Deixo aqui a carta que o Filipe me pediu para ler:

Ora viva,

São, neste momento, 18.40 da tarde – sendo que sei que esta sessão tem início às 19.00. A organização – o Pedro, mais especificamente – pediu-me um vídeo para que esta sessão se tornasse um pouco mais pessoal – ora, numa era de podcasts e de interwebs em que toda a gente aparece e fala muito, mando-vos esta carta, escrita com amor e carinho. É da maneira que não têm de gramar com a minha tromba no grande ecrã. Não desejo isso a ninguém.

Este texto de última hora é, portanto, uma forma de vos dar as boas vindas e de vos agradecer, com toda a amizade e consideração, a vossa presença hoje. Pedi ao Pedro que o lesse, e peço-lhe já desculpa por o obrigar a ler estas palavras que são sobre ele, e que são sinceras.

Foi mais ou menos assim sem uma cara associada, que conheci Pedro de Alarcão Lombarda. Figura misteriosa da internet repleta de carisma e secretismo, conquistou-me de imediato pela simpatia e pelo amor incondicional que tem pelos filmes. É alguém que também cativa pela ousadia das suas escolhas – num tempo em que a expressão “Guilty Pleasure” é tão utilizada – gostaria que essa expressão fosse de vez para o caralho. Ou se gosta, ou não se gosta. 

E, com Pedro Cinemaxunga, os filmes classificam-se de 0 a Commando. Aliás, no Letterboxd do Pedro, ao lado do lendário filme de Stallone, podemos encontrar o 2001 Odisseia no espaço ou o Come and See nos favoritos. É, de facto, alguém que adora isto e que realmente sabe da coisa, sem preconceito, com um conhecimento enciclopédico e invejável. O seu nome, portanto, não lhe faz justiça – Xunga ou não, ele viu tudo o que há para ver, e quebra as barreiras de género, como quem realmente gosta de filmes deve quebrar.

E para esclarecer, é óbvio que o Commando não é do Stallone. Era só para ver se estavam com atenção. Já agora, quem não viu o Commando (ou o cobra, vá, já que falámos no stallone), tenha a bondade de sair da sala agora. 

É natural que, com os anos, O Pedro se tenha rodeado então de um grupo de amigos que partilham esta paixão – o Carlos, o Miguel, e a minha amiga Carla Rodrigues – devemos-lhes este maravilhoso festival, o célebre podcast de cinema – e também o anuário do Senhor Joaquim – uma série de livros de cinema que recomendo. São um lembrete do tempo dos videoclubes onde se alugavam cassetes pirata em VHS e Betamax. Sim, eu sou desse tempo e tenho muitas saudades.

Tenho tendência a perder o foco, por isso vou direito ao que importa. 

1- Tenho muita pena de não estar aí convosco hoje. 

2- Tenho também a certeza que, nesta sala, nesta noite, estão alguns dos cinéfilos mais apaixonados da cidade – tenho, portanto, uma profunda gratidão pela oportunidade de exibir não um, mas os dois filmes que fiz. Normalmente diz-se “o próximo será melhor”, mas, de facto, nunca sei se farei outro ou não – dei tudo nestes e espero que gostem do resultado.

3 – Agradeço mais uma vez à organização por acharem que, de zero a commando, estes filmes até são dignos de serem exibidos neste certame que tem tudo para se tornar no mais entusiasmante festival do país.

Desejo-vos a todos uma excelente sessão, e uma noite memorável no Nalgas film festival – que seguramente vai ficar para os anais da história.

Um grande abraço e obrigado,

-Filipe Melo

Foto de André Henriques
Velhinho lendo textos. Foto de André Henriques

2 Comments

  1. Pedro Pereira

    Que cardápio. E que carta bonita do Filipe Melo.
    Sorte dos que puderam estar pelo Porto nessa noite para disfrutar destas belas curtas.
    Abraço a todos.

  2. pedro

    Verdade. Meteu-me um nozinho na garganta.

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