Um homem simples e humilde. Ligado a uma rotina espartana, rigorosa. Austera… O tempo pinga vagarosamente enquanto aprecia os prazeres que o mundo abandonou. Contempla os efeitos da natureza nas obras do homem. Ou a obra de Deus, se formos religiosos. Limpa diariamente as belas retretes de Toquio, sempre atento e completista. Wim Wenders leva-nos pela mão a uma visita de estudo da simplicidade, do abandono dos modos vertiginosos da atualidade em prol de paz de espírito, a bem da saúde mental, enfiado mesmo no centro do furacão dessa mesma vida caótica e consumidora. Um estilo de viver minimalista e analógico. Cassetes áudio e livros de bolso em segunda mão. Um colchão fraquinho que me fez doer as costas mesmo sem me deitar, madrugadas fotocopiadas, uma cópia de uma cópia de uma cópia, curiosamente dos antípodas do Fight Club.
Deixando-se embalar pela música, pelo amor à fotografia a preto e branco das sombras filtradas pelas folhas das árvores, da escolha de um livro de bolso em segunda mão ao final do dia, de acabar um capítulo ou um livro antes de adormecer. É assim estruturado este Hiarayama da Silva, 23, quai du Commerce, Setagaya, Tóquio. Mas tal como na obra de Chantal Akerman, o mundo e o destino conspiram contra a vontade dos nossos protagonistas canalizarem os seus anseios, traumas e incertezas num trajeto linear e livre de surpresas.
Este homem vê a sua tentativa de fuga e eremitismo militante constantemente forjada e contaminada pela vida exterior, poluída dos pecados capitais que o fizeram procurar a oclusão social sem fisicamente se ausentar. Essa disrupção da sua disrupção empurra-o constantemente para a vida de boçalidade, das maleitas da normalidade que o afeta constantemente e, pelo contágio da empatia, a nós também.

É um filme belo e contemplativo que nos leva pela mão a passear por aquilo que é a paz de espírito, com a banda sonora ideal, a luz perfeita, o ritmo perfeito da vida e a cadência da natureza para nos iluminar a alma, numa espécie de experiência religiosa pagã naquilo que só consigo associar a “liberdade”. Aos poucos a sua força isolacionista vai sempre sendo testada e este homem, teste após teste, vai saindo vencedor, qual Rocky Balboa da serenidade e harmonia. Aquilo que hoje os psicólogos de tiktok chamam de wellness e mindset ideal. Ou a que as sopeiras do Facebook chamam de “pessoa resolvida”. E tal como as pessoas resolvidas do facebook, não está resolvido porra nenhuma.
Este estado contagioso faz-nos apreciar esta viagem, em que por artes mágicas Wim Wenders nos transforma temporariamente no Sr. Hirayama, em que por momentos também os nossos problemas se ausentam e nos libertam das suas amarras fétidas e cheias de farpas, para nos fazer passear um pouco pela liberdade de se poder fazer o que bem entendemos. Tal como o destino do Sr Hirayama, também nós ficamos meio confusos no final com a dualidade entre optar pelo Fukitol ou encarar a vida de frente e resolver alguns pendentes mais chatos.

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