O efeito Mandela é um chavão usado muito na Internet para definir aquelas situações em que nos lembramos erradamente de coisas que nunca existiram, como se existissem num universo paralelo. Foi assim baptizado porque se associava a pessoas que se lembravam vividamente que Nelson Mandela teria morrido na prisão. A mim aconteceu em duas situações recentemente e sempre relacionadas com cinema. A primeira foi ao ler o livro Ready Player One. O nosso protagonista citou a expressão “Oh my God it’s full of stars” dizendo tratar-se de uma frase do filme 2010. Ora, que raio! Tinha quase a certeza que era do 2001. A frase que o Dr. Dave Bowman diz ao entrar no campo estrelado como novo humano no final do filme. Curiosamente aparece no livro, que também li. Aparece depois em maior proeminência no 2010, livro e filme. Ah caraças, andei a citar mal toda a minha vida.
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Há uns meses comecei a ver Into The Void de Gaspar Noé. Não sendo muito acessível é, sem dúvida, um grande realizador. O filme estava-se a compor, boa introdução e buildup, muito bonito, muito bem realizado. Etéreo, colorido, modernaço. Planos gloriosos, cenas compostinhas, representação cinema 2.0 com o típico toque de hiper-realidade, abundância de belas mamas, coisas que enriquecem sempre a experiência cinematográfica. Ora, rapidamente este filme resvala para a mais deprimente miséria infligida a duas crianças num flashback se torna a coluna vertebral de todo o filme. Não é um mero momento de passagem, o Noé usa-o como cavalo de batalha, espanca-nos com o conceito. Quis o acaso do momento que esse casalito de irmãos que sofre as mais nefastas bofetadas do destino tivesse a mesma idade dos meus dois filhos mais velhos. “Foda-se, não aguento esta merda!”, pensei. “Que peso aterrador, difícil de respirar…”. Imediatamente carreguei no STOP, só que estas coisas não desaparecem assim. Até a minha mulher me perguntou que cara de carneiro mal morto era aquela e eu respondi prontamente “Nada, continuo viril com um talhante prussiano.” Durante dias aquelas visões atormentaram-me. Olhava para os miúdos a brincar e pensava nas pobres crianças do filme. Acabou por desaparecer com o tempo mas o certo é que há filme difíceis de ver quando temos filhos. Filhos que sabemos existir e que amamos. Não me estou a referir a bastardos que ficaram no ultramar ou daquela galdéria a quem demos 80 contos em 1986 para ela ir fazer um aborto e ela guardou o dinheiro para comprar uma televisão a cores, teve o puto e apareceu 18 anos depois a pedir dinheiro para a faculdade quando o puto afinal até era repositor de stocks no Minipreço e nunca tinha passado da terceira classe.
Para os aficionados de longa data do cinema de terror é mais que óbvio que o género está morto. Não no sentido de morto, enterrado e esquecido. Diria que está em coma induzido e mantido no limbo da ausência de criatividade, a canibalizar-se, sofre de doenças de consanguinidade. Arriscar sai caro e usar as mesmas técnicas para assustar teenagers de 14 anos funciona sempre, porque todos os anos há um lote novo de teenagers que nunca foi impressionado antes. Para nós, os que seguem o género desde o início dos tempos (videoclubes, vá!), pouco material novo existe. É mais rentável para mim apostar em clássicos que escaparam do que investir o meu precioso tempo a ver templates açaimados e letárgicos. A culpa, na minha humilde opinião, é do Saw, do gore CGI e da banalização do jump scare.
Felizmente o cinema actual não é só decadência e unidimensionalidade. Enquanto que o mainstream nos empurra pelas goelas abaixo pastelões desumanizados e inteiramente prostéticos, alguns autores lutam por manter o seu cinema activo. Amantes das artes antigas, dos artesãos da velha escola, tentam honrar os seus ancestrais elevando um pouco a fasquia. Esta tipo de realizadores, os autores, são transversais ao próprio tempo, não se definem num estilo, mas numa vontade que é, obviamente, o cinema na sua linguagem mais pura e honesta. Autores como Woody Allen, Roman Polanski, Quentin Tarantino, Lars von Trier, Wim Wenders, Pedro Almodovar, John Waters, David Cronenberg, Takashi Miike, Michael Haneke, Alfonso Cuarón, Paul Thomas Anderson, Terry Gilliam, Alejandro González Iñárritu, Takeshi Kitano, Jean-Pierre Jeunet, Martin Scorsese, Jim Jarmusch, Michel Gondry ou mesmo Manoel de Oliveira. Só para falar nalguns mais mediáticos e que de repente me vêm à cabeça. E, claro, o perfeccionista mais obsessivo compulsivo da actualidade, o fantástico Sr. Wes Anderson.
Cheguei mais cedo a casa. Ainda tinha tempo de ver um filme antes que o infernal furacão de imparável destruição e balbúrdia apocalíptica chamado rotina com crianças tivesse o seu início. Descalcei-me, gritei de dor lancinante e deixei que as lágrimas me escorressem pela cara devido a uma pequena cabeça de Mickey (da Lego) que se tinha acabado de me cortar um tendão e estava agora alojada da parte mais dolorosa do metatarso. Sentei-me, absorvi o sangue com um casaco da Barbie e liguei o meu mediacenter. Corri todos os filmes que me pareceram boa ideia quando os “adquiri”, mas curiosamente nenhum deles me fascinava. Filmes de extraterrestres, violência perfeitamente gratuita, humor negro e ofensivo, pornografia sueca dos anos 60, super-heróis de calcinhas de licra enfiadas no rego, monstros, filmes com acontecimentos de tal envergadura que podem acabar com o mundo (várias vezes) e uma pasta chamada “Corredor da Morte”, onde coloco os filmes até ter coragem para os apagar. Quem diz apagar diz outro verbo qualquer com sonoridade menos ilegal. Bem, carreguei no play em “The Kids Are Alright” e deixei-me embalar pelo confortável ambiente familiar de um lar onde um casal de lésbicas em crise de meia idade tenta salvar a sua tempestuosa relação.
A primeira ida ao cinema das nossas vidas é sempre polvilhada de magia e fogo de artifício. É um entrar num fabuloso mundo novo de assombro, uma dimensão paralela onde afinal tudo é perfeito. Independente do filme que se vai ver. Seja o Breakdance 2: Electric Boogaloo, o Naked Lunch ou o “Dois paus no cu da Avó”, é um filme que nos acompanhará até ao final dos tempos. Aos 106 anos, no leito da morte, com uma câmara da TVI apontada à nossa moribunda fronha e um clone de Manuel Luis Goucha a fazer perguntas como “Sente-se feliz por ir finalmente morrer?” somos incapazes de reconhecer qualquer uma daqueles idiotas que dizem ser nossos filhos e netos, mas o primeiro filme que vimos no cinema é projectado frame a frame de um hemisfério cerebral para o outro, incluindo trailers, intervalos e aquele pacote de Malteseres que conseguimos contrabandear porque havia ainda o bom senso de se proibir comida nas salas de cinema.
Nós, cinéfilos com experiência, já percebemos por várias ocasiões que ver um filme que gostamos nem sempre é sinónimo de entretenimento e tempo bem passado. Há filmes que se tornam inesquecíveis, que crescem dentro de nós pelo seu hiperealismo ou desconforto de determinada temática. “Idiotern” de LarsVon Trier ou “Martyrs” de Pascal Laugier são exemplos disso mesmo que falei por aqui recentemente. Mas abordar miséria humana, terrorismo, toxicodependência, abusos infantis, pedofilia, necrofilia e crueldade num tom de esperança e optimismo, só mesmo Terry Gilliam.
Longe vão os tempos em que a única coisa que apreciávamos da Suécia eram as gémeas Inga e Helga todas embezuntadas com óleo de coco a lutarem entre si por atenção masculina usando para o efeito um inexistente par de cuecas e os seus viçosos e anti-gravitacionais seios. Eles também produzem um cinema de muito boa qualidade, pautado pela bela cinematografia semi-descolorada e a curtíssima profundidade de campo. Let The Right One In é o filme que impede que Thirst (de Chan-wook Park) seja o melhor filme de vampiros que vi nos últimos 10 anos…
De há uns tempos para cá uma conspiração de larga escala tem grazado o país. Uma sociedade secreta anda a tentar reescrever a História dizendo às nossas crianças que o Avô Cantigas é este que está aqui em cima na foto. Por mais que tentemos incutir na cabecinha das nossas crianças que este não é o Avô Cantigas, elas teimam em pensar que somos senis e não percebemos nada de TV, à excepção do telejornal. Por isso peço a quem o tenho retido que o liberte. Queremos o original, queremos aquele que cantava na Arca de Noé, aquele que tratava o Júlio Isidro por tu. Aquele que enchia o cabelo de farinha para não se notar que afinal tinha 30 anos…
De há algum tempo para cá tenho vindo a batalhar-me selvaticamente com o meu filho por um lugar na TV. O puto é novo, ainda não tem um ano, mas já exige alguma exclusividade televisiva. Demais para o meu gosto. Mas lutar com um puto é complicado porque eles acabam por vencer por cansaço. E depois há que aguentar longas horas das mais irritantes músicas alguma vez compostas. Um dos que mais detesto é, sem dúvida, o Ursinho Gummy. Este urso é um enigmático personagem criado nos estúdios de Satanás com o único propósito de programar as nossas crianças para nos assassinar no sono com uma faca do pão ou então para entrarem numa faculdade aos 21 anos com uma metralhadora debaixo da gabardine e começar a despachar malta como um padeiro em noite de S. João!
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