Esta semana terminei de ver um filme que comecei em 2001. Foi, muito provavelmente, o maior intervalo de tempo que acumulei para terminar um filme. Jurassic Park 3, um filme patético e infantil de características marcadamente mercantis, cuja intenção seria apenas sugar dólar a saudosistas que 8 anos antes vidraram de emoção com o original de Spielberg. E só o fiz porque, num preguiçoso zapping pelos canais de cabo, me apercebi que nunca o tinha acabado. De imediato o meu primitivo cérebro me transportou para uma era diferente, para os vertiginosos tempos do início do milénio. Um tempo de leite e mel, de relações saudáveis, das tardes de café, das noites de verão esquecidas sob os plátanos da Praça da Republica, de ir trabalhar de directa com o cérebro apenas a apanhar estática. Antes do euro, antes que os compromissos da vida adulta me enraizassem nestas rotinas que me apodrecem as carnes e me toldam o espírito dia após dia (após dia), levou-me para uma época mágica, uma época em que se viveu a melhor de todas as histórias de amor, a minha!
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Sharon Tate, musa e esposa de Roman Polanski. Protagonista de um dos meus filmes preferidos de Polanski, The Fearless Vampire Killers, haveria de ser assassinada por Charles Manson e a sua pandilha. Estava grávida de 8 meses e meio. Ficam as fotos de uma beleza inesquecível. Foto de bónus no final.
Bruce Lee dá aulas de luta a Sharon Tate
Filmes há que não valem um pisso, mas que transportam consigo toda uma aura de freakshow ambulante, capaz de os catapultar para a história da sétima arte nos capítulos da bizarria. A extraordinária incredulidade estará em perceber como tal extravagante lavagante pode ser alguma vez projectado num ecrã de cinema. Pior, como é que no processo alguém idealizou, aprovou e efectivou tal obra. Hoje é uma dessas singulares ocorrências que aqui vos trago. Roar é o brainchild da actriz de The Birds (Tippi Hedren) com o produtor de Exorcist (Noel Marshall). Ora, depois de uma viagem por África, em comunhão com a natureza no espírito dos 60s, apenas as ervas não estavam a salvo deste voraz casal que se apaixonou por uma moradia colonial abandonada no interior de Moçambique. Nesse casebre abandonado por portugueses que haviam já consumido a sua zona de influência morava agora um família de leões. Faziam daquelas luxuriantes ruínas o seu lar. Consumidos pelas drogas que lhes inseminavam o cérebro de conceitos de elevada abstracção, estas alminhas sonharam fazer um filme em que uma família normal, com as suas tropelias do destino e as suas rotinas mundanas, partilhavam o lar com 100 animais selvagens. Seria a estreia de Noel na realização, um conjunto de actores de renome com 100 animais selvagens não domesticados. Leões, tigres, panteras, jacarés, elefantes… Enfim, nada que pudesse à primeira vista correr mal.
Um mês depois da estreia de Mad Max: Fury Road a Internet ainda se encontra apaixonada pelos visuais avassaladores de Miller e artistas por esse mundo fora inspiram-se nas wastelands de Mad Max para criar as suas próprias versões da desolação do futuro doente do universo Madmaxiano. Fiz um apanhado de posters caseiros de Mad Max e deixo-vos aqui uma amostra da qualidade destes trabalhos. De acrescentar que existe uma colecção da Vertigo Comics que irá ter a tarefa de explicar as origens dos personagens principais, cujo número um já tive o prazer de ler e que dá umas luzes acerca das origens de Immortan Joe e Nux. Existe também um glorioso livro chamado Mad Max: Fury Road INSPIRED ARTISTS com páginas imensas do mesmo material de que são feitos os sonhos.
– O senhor, por acaso, sabe quem eu sou?
– Paiziiinho!
– Não, não. Sou um drama familiar em formato de telefilme. Coincidentemente passa-se em pleno apocalipse zombie e protagonizado por Arnold Schwarzenegger.
– Eh lá! Isso é que deve ser matar, esquartejar, decapitar, sangue a jorrar, tripas arrastadas pelas ruas, prédios em chamas, exércitos a bazucar hordes de milhares de zombies pelos ares, a destruição de uma cidade grande americana no terceiro acto, motosseras a…
– Erm… Sim… Não! Não é bem assim. É mais silêncio, contemplação, sofrimento interno, escuridão…
– Escuridão como em “trevas”, a negridão dos tempos, o desespero de se ser mastigado vivo por uma matilha de mortos vivos enquanto se lhes arranca metade do torço a tiro de caçadeira de canos serrados?
– Não. Mais em falhas de electricidade e problemas na infraestrutura de distribuição de alta/média tensão.
– Oh diabo! E vai ser o Arnie a conseguir reconstruir rapidamente toda essa destruição graças à sua capacidade física de super-humano e a uma experiência avançada que não se aprende nos livros para grande humilhação dos jovens superiores hierárquicos que pensavam estar perante um velho caquético que no final lhes salva o dia?
– Não, a infraestrutura mantém-se inalterada durante toda a duração do filme.
-Nem mamas?
– Nada…
No processo de criação de um filme é frequente o realizador não estar directamente envolvido em alguns aspectos, como o marketing por exemplo. Tal não era o caso de Stanley Kubrick, obsessivo em todos os aspectos do processo de desenvolvimento do filme, desde o catering aos detalhes de projecção em sala. Para a promoção de The Shining, Kubrick contactou o designer Saul Bass (que colaborou anteriormente com ele em Spartacus) para criar o poster final. Várias foram as propostas rejeitadas por Kubrick, cada uma delas com anotações justificativas. Deixo alguns desses posters. Se clicarem na imagem conseguem ampliar.
A tecnologia avança de modo vertiginoso, descontrolada, eufórica… Uma corrida desenfreada que já dura desde que DaVinci alinhou umas rodas dentadas debaixo de uma pele de cabra. Vivemos num tempo de imprevisibilidade tecnológica, milhões de engenheiros e cientistas a trabalhar, coordenar esforços, em busca do santo graal tecnológico: um robot com entrefolhos correctamente anatómicos que se possa foder. Será a empresa que o criar que poderá controlar o planeta, mudar regimes, criar estratégias globais. Quem entre nós não apreciaria ter um parceiro sexual topo de gama que tivesse um botão de off e esperasse o sono do amado para actualizar o firmware na pacatez da noite? Depois de engomar camisas e lavar as bancas da cozinha. E é por aqui que a nossa psique colectiva alinha o progresso da humanidade.
O hype é a unidade que os cinéfilos usam para quantificar a expectativa que antecede um filme. Bem, na realidade hype pode ser traduzido directamente por expectativa, mas por vezes precisamos de reservar uma conjunto de buzzwords para dar um extra-flair aos textos. Que em parolês significa “embelezar”. O hype também não é claramente quantificável, uma vez que vem em apenas três versões: muito, pouco ou nenhum. Ao hype damos frequentemente carga negativa porque nos estraga sempre a experiência. “Porque diziam que era bom e afinal fica a ligeiros milímetros de ser uma bela merda“. Porque se não for excelente é mau em sob condições de forte hype. Há o hype criado apenas pelo marketing eficaz da máquina publicitária do próprio filme e do seu exército de lacaios disfarçados de especialistas de imprensa e powerusers das redes sociais e há o hype das críticas hiperbolarizadas daqueles que viram o filme antes de nós e precisam de se vangloriar. O hype é como o colesterol. Há hype bom e hype mau. Há que saber distinguir para conseguir prever com alguma exactidão o outcome (buzzword para dar flair) da experiência cinematográfica. O mood que irá definir o mindset aquando do screening. Um amigo com quem temos afinidade cinéfila e no qual confiamos nas críticas e que gostou do filme pode ser interpretado como hype bom. Um parágrafo patrocinado pelas pensos higiénicos Bedhum na revista “Ana mais Atrevida” é hype mau. Uma publicação online ou um blogger independente pode ser hype bom. A esposa do homem do talho que foi esteve a passar a ferro e ouviu dizer o Goucha que um filme seria bom, é hype mau. E assim sucessivamente. Vem esta pequena introdução justificar o facto deste filme ter chegado atrasado ao meu ecrã e se fez copiosamente anteceder por um fluxo de hype capaz de evocar as mais poderosas metáforas menstruais .
Coimbra, 1987. Tudo se resume sempre ao início, à génese das coisas. A um senhor a quem chamávamos “senhor”, de seu verdadeiro nome Dinis, que teve a visão de criar um videoclube e realizar as mais selvagens fantasias de adolescente dos anos 80: poder aceder livremente a pornografia e ver filmes sem sair de casa. Nesse templo de peregrinação semanal conhecemos Max, o louco, numa trilogia de luxo da qual idolatrávamos o segundo tomo como se de uma referência religiosa se tratasse. Lord Humongous era o nosso Satanás e o Road Warrior o Jesus redentor. Os santos e os mártires pereciam à fúria dos demónios das areias nas suas infernais bestas motorizadas. O discurso “There has been too much violence. Too much pain. (…) Just walk away.” rodava 3 ou 4 vezes ao fim de semana numa cópia que fazíamos de vídeo para vídeo, juntando esforços com um vizinho com o intuito de partilhar esta joia. Uma operação tão complexa como activar ogivas nuclear, com os dois responsáveis pelo equipamento a rodar a chave em simultâneo. As nossas bicicletas tinham espigões laterais e nos nossos corpos ostentavam-se as mazelas de acrobacias falhadas. A nossa religião era Max, o louco, e os clones italianos de baixo orçamento eram a nossa perdição. Todos consumidos, todos copiados, todos partilhados. Como representantes da religião de Max, a decepar, mutilar, incinerar e decapitar por esses wastelands fora. “Just walk away” é a voz que ainda oiço a meio da noite, ensopado em suores dos mais nefastos pesadelos. Como senti a falta do cinema do Max de Miller neste anos que passaram. A nossa relação não acabou bem, o último com a Tina Turner foi um embuste, uma colagem de interesses que não resultou como pretendido. Não é um filme desprezível. Também não chega aos calcanhares do Road Warrior.
À distância, o ano cinematográfico de 2015 faz-me lembrar aquelas viagens baratas em hotéis de 3 estrelas da Tunísia que compramos fora de época em promoção por catálogo. Tudo parece luxuriante, paradisíaco, o local perfeito para (nem acredito que vou dizer isto) “recarregar baterias”. Uns meses em delírio expectante e quando lá chegamos não se encontra nada do que foi prometido, os pontos de interesse do catálogo ficam separados por centenas de quilómetros e mesmo assim resumem-se a um único ponto de beleza, que foi o ângulo captado pela câmara. Aqui estamos nós em 2015, no ano que o alinhamento de blockbusters era tão perfeito que em 2013 havia geeks a querer hibernar para passarem depressa estes dois anos. Em 2015, no olho do furacão, na época alto do blockbuster e olhando em volta é a desolação do costume. A coboiada dos heróis de licra e os CGI-fests.
Captain’s Log, supplemental. Estas são as conversas que decorreram no passado dia 24 de Fevereiro numa sessão do consultório do Tio Xunga. Ficam aqui transcritas para que o Facebook não as engula nas nefastas areias do esquecimento. Comecemos então que há muito que ler.
Ricardo T. : Tio Xunga, qual é o melhor filme de sempre?
Tio: Commando (1985)
Nos meus tempos de jovem descomprometido e de ir para onde o vento sopra fui baterista e tive algumas bandas, não necessariamente por esta ordem. Eram tempos de grande azáfama, nos anos 90 centenas de pequenos bares e clubes competiam entre si para ter bandas ao vivo que era isso que a malta gostava. Viver um centésimo do que se vivia na latejante noite de Seattle. Eu não era do tipo rockstar, pelo contrário. Era aquele baterista soturno e cabeludo que servia de técnico de som, transporta caixas e tratava de minimizar os estragos porque as condições nunca eram as prometidas. Isto enquanto o vocalista aproveitava a carrinha vazia para brincar ao esconde o martelo com duas noviças inebriadas facilmente impressionáveis. Entretanto abandonei por razões profissionais, mas o que vivi marcou-me para sempre. O músico que quer ter carreira é uma pessoa obcecada. Alguém que quer chegar ao topo da sua área. Mesmo o facto de saber de antemão que nunca o conseguirá não o irá demover de tentar. Os músicos mais empenhados tornam-se assim em ermitas num estado de quase permanente autismo. A música é a única coisa. É o caminho, a vida e o amor. Melhorar, ser melhor, ser o melhor, progresso diário. Anos depois de abandonar a arte percebi que podes largar a bateria mas a bateria nunca te larga a ti. Um baterista, ou um baixista e percussionista, vive em ritmo. Tudo tem um ritmo e é a ele que obedece. Procura padrões, está em estado de permanente batuque, seja com lápis, dedos, pés, seja em reuniões com a administração, funerais, em conversas que deviam estar a prestar atenção. É uma maldição.
Continuação da análise ao que de melhor vi no ano que passou. Tal como todas as boas listas é desonesta, parcial e incompleta, um trabalho em progresso. Ou porque me esqueci de alguns ou porque ainda não os vi todos. O tempo lhe fará justiça.
Agregar filmes em listas é uma maneira rápida de falar do que fomos esquecendo ao longo do ano. Já fui mais apologista das listas e dos tops, mas também já fui menos. Vou dar início a um série de artigos em que abordo o que se passou em 2014, nomeadamente na área do cinema. Fora o cinema as coisas não correram mal, nasceu o meu terceiro filho e aprendi a amar o caos do dia a dia, a doce carnificina dos extintos tempos livre e a aceitar que por vezes é normal chegar ao trabalho com uma mancha de 10cm de vómito de bebé nas costas. Uma das vantagens de ter pouco tempo livre é que o apreciamos mais e aqueles valiosos 90/120 minutos que nos restam ao final do dia, já a roubar sono madrugada adentro, terão que ser gastos em algo que valha a pena. Falemos em 2014 com uma taxa de erro de um ano. As datas de lançamento são sempre caóticas por causa dos festivais, das estratégias comerciais das produtoras e outros factores nos quais cagamos de alto. Este foram os meus filmes de 2014.
Tenho algumas (poucas) regras que sigo no que diz respeito a escrever posts no blog. Uma delas é tentar escrever textos que possam ser lidos sem ser necessário contextualizá-los temporalmente. No entanto hoje vou ter que quebrar essa regra. Hoje, dia 7 de Janeiro de 2015 aconteceram dois negros eventos relacionadas entre si que vou analisar separadamente. Um ataque a uma redação de um jornal humorístico francês provocou 12 mortes, a maior parte jornalistas e cartoonistas. Foram assassinados por pessoas que, zangadas com o mundo, julgaram ver nestes artistas a causa de todos os males da humanidade, interpretaram linearmente as suas subjectividades artísticas e as figuras de estilo caricaturais. Acharam ser o humor a pior das malevolências. Dentro das suas limitadas mentes de cepos unidimensionais terão pensado fazer o seu mundo melhor com a execução sumária destes artistas, jornalistas, cidadãos, pais de família, filhos de alguém… No seguimento desse ataque deu-se o segundo evento que marcará para sempre este dia. Um polícia imobilizado pelos disparos deste ataque jaz ferido e levanta as mãos a pedir clemência, claramente debilitado. Quase em directo, em milhares de canais de TV do mundo inteiro, um elemento das forças que ajudam a manter ordem neste mundo é chacinado com um tiro na cabeça. Sem drama, como se o atirador estivesse a fazer saltitar pedrinhas na superfície de um idílico lago nas montanhas dos Alpes Suíços, como se de uma entediante tarefa rotineira se tratasse. Ali, sob o olhar incrédulo dos cidadãos do mundo, uns a almoçar, outros a jantar, outros ainda na azáfama matinal de preparar as crianças para a escola, a mais fria crueldade colocou fim a uma vida humana. A maior violência que já vi. Não o acto em si, não a execução, não a barbárie associada a todo o conjunto. Todos nós vemos diariamente decapitações, centenas de pessoas alinhadas vivas em valas comuns para serem calmamente executadas por patifes imberbes que parecem aborrecidos por lhes terem interrompido o Grand Theft Auto V quase no último nível. O facto de ter sido apresentado naturalmente, sem grande alarido. “Imagens chocantes“, ouvimos todos os dias e estamos habituados a que seja um isco de audiência. “Ah, é verdade, agora aqui nesta cena um polícia apanha um tiro na cabeça. É melhor tapar os olhos às criancinhas.” A frieza dos média não ajudou a melhorar o dia. Senti o cérebro gelar e fiquei com aquele feedback surdo que costumamos trazer da discoteca às 7 da manhã ou dos concertos de Manowar. “Filhos da puta”, dizia um amigo no facebook. E com toda a razão.
A partir de agora os estados irão unir-se, fazer taskforces, thinktanks, jointventures, regras que irão prejudicar pessoas que não têm relacionamento com isto, uma mini-americanização da Europa, escutados todos os telefonemas, lidas todas as mensagens, escrutinado todo o tráfego internet das famílias que pouco mais que email e preencher o IRS fazem. Um investimento brutal no upgrade do já de si Big Brother. Eu nem me importo de abdicar de algumas liberdades para que os meus filhos, a minha família, os meus amigos, as pessoas que nem sequer conheço mas que decerto merecem tanto como os que amo, tenham segurança. Só que temo o pior. Certamente que um dia a poeira irá baixar e a máquina que tudo cheira nunca cessará de funcionar. Este ano procura terroristas, para o próximo escuta esposas infiéis e ministros corruptos e pouco faltará para que as multinacionais manipulem os poderes para multar e prender os miúdos de 16 anos que usam torrents ou que sacam discos dos Coldplay sem pagar o preço pornográfico que lhes pedem. Espero que não seja este o nosso futuro, que o medo não sirva para nos impor um regime Orwelliano ou o fundamentalismo moral das multinacionais disfarçadas de estado.
Há filmes que nos apanham de surpresa e outros há que se fazem anteceder por uma comitiva de arautos que nos vêm massajar o sistema límbico, dando garantias de qualidade antecipada, o famoso hype. Gone Girl é um desses exemplos de filme que se fez sonoramente anunciar. Porque é realizado por um ilustre, porque tem o Ben Affleck (a humedecer vulva na faixa etária entre os 30 e 55 anos) e baseado num best seller de prestígio. Talvez o prestígio do livro até tenha sido criado pela existência do próprio filme. É um caso típico de masturbação circular, criação de rentáveis produtos paralelos a partir do nada. E com “nada” quero na realidade dizer 200 milhões de dólares em marketing, trafulhice subliminar, bullying legal e velhacaria em geral. Não sendo minha função emitir juízos de valor, que faço ainda assim, vamos aqui filosofar acerca de Gone Girl e perceber se estamos perante obra digna de futura herança cultura dos anos 10 do século XXI ou se é apenas mais um pomposo balde dourado de caca de vaca.
Quem gosta do cinema até ao seu âmago cedo percebe que nem todas as pessoas servem como co-piloto em navegação cinéfila. Não há problema, bons amigos não precisam de partilhar hobbies. Com o tempo aprendemos a equilibrar a nossa paixão. Guardamos alguns filmes mais mainstream para ver com os amigos, gostamos ou fingimos gostar para não levantar problemas ou achincalhamos gratuitamente além do limite do razoável. Tudo isto é a vida, tudo isto é saudável e a saúde social da nossa existência assim o exige. O problema mais complexo, porém, jaz latente e mortífero entre as paredes da nosso próprio lar. Qual gatilho capaz de aniquilar uma relação ou terminar sumariamente as perspectivas de actividade sexual no curto prazo. Falo, obviamente, dos filmes a ver com a esposa / namorada / amante / estudante de enfermagem que não acha estranho que não queiramos ser vistos em público com ela. Causa frequente de envenenamento conjugal, escolher um filme para ver a dois na intimidade do lar é uma dolorosa empreitada que não pode ser evitada nem adiada. Cada opção pode revelar-se um mortífero campo de letais areias movediças. E todos estamos fartos de ver filmes da Cameron Diaz em cuecas, a ser galdéria a saltitar e a dançar com aquele rasgado sorriso numa boca capaz de albergar em simultâneo dois generosos e saudáveis narços em avançado estado de intumescencia, Mas isto é mesmo assim. Lá no trabalho somos uns heróis, arrasamos nas reuniões, ordenamos obras de milhões, lideramos equipas de indomáveis patifes, domamos leões, caçamos crocodilos, marcamos golos pela selecção ou cortamos eucaliptos com uma simples machadada, mas em casa “lavas a loiça e não pias!”. Assim, ocasionalmente, há que consumir um filme de gaja pela salubridade conjugal e servirá este texto como guia de sobrevivência, porque às vezes mais vale um gajo atirar-se para baixo do comboio do que aturar um mulher furiosa durante uns dias.
Escrever sobre cinema é uma tarefa muito ingrata e muito perigosa nos dias que correm, acaso ocorra que o escriba sofra de susceptibilidades emocionais ou de alguma classe de bipolaridade que o possa fazer deslizar para o frio vazio da amargura sentimental. Quer-se malta rija, capaz de aguentar os rigores da paneleiragem que vê filmes de smartphone em riste e no final emitem um boçal “Caganda seca” ou o eterno clássico “achei o filme parado”. No entanto, atirar opiniões ao vento acerca de cinefilia não é exclusivo do auto-entitulado crítico de cinema. A paneleiragem com smartphone em riste a ler facebook e a ver filmes também tem direito a opinar. Arriscaria que é tão grave sub-avaliar um filme de smartphone em riste como sobre-avaliar o mesmo filme com camadas de simbologia inexistente e metafísica orwelliana. É uma era chata para o cinema. Os que agora chegaram à maturidade da vida adulta enfrentam esta coisa dos filmes de maneiras diametralmente opostas. Ou vêm pela porrada, os efeitos espectaculares, as cenas de carros, a foda e as explosões-“Ai ó méne ca fixe” ou querem ser aos 22 anos especialistas de todas as áreas da cinefilia em simultâneo, devorando camiões de sugestões de listas de clássicos e assimilando opiniões por simbiose. Serve este sintético parágrafo introdutório, sempre sucinto e conciso, para dizer que tem vindo a faltar à malta do cinema aquele descontraído cinéfilo que se diverte a ver o que gosta, que não se assusta com o que lhe falta ver e que vai involuntariamente criando uma especialização muito própria. Tem vindo a faltar também algum sentido de humor, mas aparentemente hoje em dia chama-se “palhaçada” a essa arte em desuso.
Com a actual globalização e monopólio de 2 ou 3 estúdios americanos há um deficit de cinema arrojado no mundo. Não nego a sua existência. Reforço, no entanto, a ideia de que a sua distribuição é bloqueada por aqueles que gerem o processo de ponta a ponta, atafulhando por completo os multiplexes de filmes plastificados genéricos de simplória qualidade cinéfila. Tempos houve em que os estúdios arriscavam os chamados “alienígenas escaganifobéticos” na esperança de que o gáudio de um nicho pudesse contagiar outros consumidores e , quiçá, futuros apoiantes deste tipo de produções. Eram generosamente lançados nos canais de distribuição disponíveis na altura. E havia escolha. Uma multiplicidade de opções que, mesmo o mais monodimensional cepo consumia. Ora, nesta excelsa classe do “alienígena escaganifobético” cai Hell Comes to Frogtown, cujo epíteto encaixa que nem uma luva. Vamos falar um pouco da história do último homem fértil do planeta cujos lideres, sapientes como sempre, lhe ataram uma bomba na gaita para que não pudesse ter comportamentos imorais. A sua função seria copular até ficar com o salpicão em carne viva e não perder tempo a embebedar-se ou a fumar. Haja decoro.
Na segunda metade da década de 70 William Friedkin era um realizador com Hollywood no bolso. Estava numa posição de poder escolher qualquer projecto que os meios ser-lhe-iam servidos em bandejas douradas. Podia telefonar às 4 da manhã a pedir um cheeseburger com espectáculo de anãs lésbicas amputadas cuspidoras de fogo ou exigir um sacrifício infantil em massa por imolação em triturador de carne. Sem problemas, tudo na graça do senhor. Ora o projecto que optou por realizar foi Sorcerer, a adaptação do livro Le salaire de la peur de Georges Arnaud. Poderia neste momento encabeçar todas as listas de melhores filmes, ter um estatuto de The Godfather, Taxi Driver ou Clockwork Orange mas uma improvável sucessão de infortúnios deu-lhe a extrema unção e posterior despejo nas areias movediças do esquecimento Hollywoodiano.
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