No ano passado estreou o capítulo VII do Star Wars, que vinha tão embezuntado em hype que não havia rabo que não estivesse pronto para o acomodar sem reservas. Uma banhada, o soft-reboot como agora lhe chamam. Como se este inglesismo viesse atenuar o facto de que se tratava de um remake. Encapotado, mas remake. Estava tudo tão esfomeado que caiu como comida fora de validade num lar de sem-abrigo. Podem ler tudo aqui.

Um ano depois chega a entremeada, as fatias de “vejam isto enquanto não acabamos o outro”, numa cadência que se espera repetir-se até ao final dos tempos. Mesmo quando, lá para o final do século, as coisas começarem a esmorecer e apareçam títulos como “Star Wars: Missão em Miami”, “Agora é que são elas, o lado rosa da Força” ou a trilogia das origens do tocador de harpa daquela banda do bar de Mos Eisley.

Já falei sobre isto com o confrade Miguel numa flash review que fizemos no podcast Nas Nalgas do Mandarim, que também pode ser ouvida no Youtube. Aqui.

E na semana que se seguiu recebi bastantes mensagens, mesmo de pessoas que não conhecia. Mensagens relacionadas com a review do Rogue One e, pasmem-se, maioritariamente de pessoas que discordavam. Porque o Rogue One é a melhor coisa que saiu do Star Wars desde… Aparentemente desde sempre. Expliquei-me, fui cordial. Não mandei ninguém para o caralho porque a Força está comigo e eu estou com ela. Parece-me simples e até vou estruturar a review sob a forma de FAQ. Frequently Asked Questions, para quem viveu debaixo de uma pedra até ontem.

É assim tão importante que os personagens sejam expressivos e desenvolvidos? Que se conheçam de modo aprofundado as suas motivações? Mas os protagonistas são tão bonitos…

De facto é importante que assim seja. Já todos sabemos qual a missão e qual a sua importância. Sabemos que é perigosa. Quem escreveu o argumento e idealizou o filme acha que é suficiente. Não é. Precisamos de nos identificar com os personagens e as suas causas, com as suas dores. Precisamos de perceber naquelas duas horas o que os move, o que os faz acreditar. Precisamos que nos transmitam isso. Não os queremos apáticos nem autistas. É preciso que eles nos convençam a ir também e vibrar com as suas aventuras. Se é para seguir zombificados de cena em cena podem acontecer efeitos secundários nefastos.

Ai sim? Como por exemplo?

Olha, a simpatia cair do lado do Império. Isso aconteceu-me. E acho que o realizador percebeu isso. Não de mim em concreto, mas de toda a gente. Tenho quase a certeza que alguns refilmagens consistiram em meter mais Evil no Evil Empire. Uma vez que a parte “rebelião” do filme saiu tão frouxa e deslavada, havia pessoas a achar que o Império estava apenas a fazer o seu trabalho e aqueles vagabundos piolhosos que nem para trabalhar nos carrosséis servem eram o Isis do espaço, a estragar a vida a quem trabalha. Vagabundos do Rendimento Social de Inserção a destruir propriedade alheia. Desesperados para acabar com o império para depois poderem vender ganza livremente nos planetas da orla da galáxia, tocar djambé para o seu cão chamado Anarca e abdicar do direito de tomar banho.

Mas esperavas o quê, caralho?

Esperava um filme standalone diferente dos outros. Noutro tom, porque não é um episódio a sério. É um bastardo sem direito à introdução clássica em amarelo rolante a desaparecer num ponto do espaço. Queria uma espécie de filme de guerra, como aqueles de missões de roubo de documentação da segunda guerra mundial. Mais sujo e violento. Uma mistura de Saving Private Ryan com Black Hawk Down. Umas batalhas ao estilo do Longest Day, pessoas a morrer, nós em lágrimas porque aquele que tanto amámos pereceu em glória. Aqui aconteceu apenas com o Robot, o único com motivações, backstory e desenvolvimento de personagem. E é um robot. Obviamente que isto seria apenas o meu desejo, o filme nunca poderia ser assim.

Porquê?

Porque a Lucasfilms foi comprada pela Disney. E a Disney quer vender bilhetes a crianças, por isso lança o filme nas férias do Natal. E se entrarem crianças, a partir dos 6, terá que ser uma coisa limpinha e inócua. Com a inocência de um sabonete líquido. Apesar de ser admissível que as crianças não compreendam completamente a história, não podem ficar chocados com grafismos mais agressivos. Nada de mamas, sexo e decapitações. Nem umas calças de napa embaladas a vácuo na Felicity Jones e ângulos baixos do seu posterior. Daí só haver gore com um robot, porque é um robot.

Se as crianças não vão perceber o filme, porque as deixam entrar?

Porque um bilhete é um bilhete e esta indústria vive do box office. Vão ali absorver aquele universo, ver as naves e os bonecos. Depois, como o filme é estrategicamente colocado na altura em que os pais se sentem mais generosos, só têm que fazer uma birra porque querem comprar o boneco do filme. Classic Disney.

Achas mesmo? O único boneco nessas condições é o robot que diz piadas e parece o Sheldon do Big Bang Theory.

Só podes estar a gozar, amigo imaginário que na realidade sou eu também a falar comigo próprio. A Disney empacotou no filme todas as referências possíveis do universo Star Wars. Como os criadores de cavalos os queimam com aquele ferro da ganadaria, a Disney enfarda lá tudo o que seja boneco para vender. Desnecessariamente. O R2D2 e o 3CPO aparecem, para as pessoas dizerem “Ohhh, que querido. Vou já comprar um.”. A princesa Leia de totós, as naves todas e mais algumas. Os Imperial Walkers são porreiros e os fãs adoram. Toca a encher tudo de Imperial Walkers. E nem me metam a falar do Darth Vader.

Fala do Darth Vader. Achas que foi desnecessário também?

Acho que seria um bom equilíbrio deixá-lo apenas na cena final. Que é boa. A melhor. Em conteúdo e em simbologia. Porque faz a ponte para o New Hope. As cenas intermédias são masturbatórias e mercantilistas. De certeza que foi também tudo feito nas refilmagens. Principalmente a cena em que se conhece o castelo do Vader em Mordor. Um ripoff do castelo do Skeletor, a coisa mais desconfortável do mundo. Porque se me tivessem cortado as mãos e os pés e me tivessem deixado a assar num planeta de lava enquanto a minha esposa grávida agonizava e morria noutro canto da galáxia, era mesmo assim que queria a minha casa. Num planeta de lava, rodeada de lava, com umas cascata de lava que vai embocar num lago de lava. Ainda por cima estamos a falar de uma pessoa com problemas respiratórios. Pobre senhor. Para quê? Para vender o castelo do Darth Vader da Lego e meter meia internet a discutir as opções estéticas daquela construção e o porquê de ter uma péssima iluminação.

Mas.. mas… o filme é puro Star Wars, cheira a Star Wars, é o sonho molhado de qualquer fanboy.

Não discordo. É, de facto, visualmente competente. É. Tem todos os elementos que reconhecemos do Star Wars original. As naves, as fardas, os interiores, os sistemas electromecânicos, os ecrãs de fósforo verde, as vestimentas sci-fi dos anos 60 e aposto que por baixo daquelas roupas ninguém se depila em excesso. Isto é porreiro do ponto de vista da nostalgia. Eu sou nostálgico por natureza, sei apreciar estas coisas. No entanto já vamos num dezena de filmes Star Wars e continuamos a orbitar os acontecimentos do New Hope e The Empire Strikes Back. Que na realidade são aquilo que é bom em Star Wars, é daqui que emana todo o carisma deste modo de vida, que é disto que se trata actualmente. Não há arrojo para avançar para outros problemas geoestratégicos da Galáxia. Estas entremeadas spinófficas vão continuar a mungir o leite sagrado da nostalgia e os novos episódios vão reviver a saga original sob a forma do tal “soft reboot”.

O que propões então?

Nada. Quem sou eu para propor o que quer que seja. Sei que existe um rico universo no universo expandido, com sagas emocionantes que nada têm a ver com o Dallas do clã Skywalker, que poderiam ser aproveitadas. Não conheço, mas há pessoas em quem confiava que me alugassem um filme que me falam disso. Nos jogos, comics e até livros a sério, de ler, sem bonecos. Iria por aí. Só que a Disney não vai fazer isso, não é dinheiro fácil e garantido. Seria partir para o desconhecido, o frio vácuo do box office imprevisto. E esta malta gosta muito do seu dinheiro. “Dinheiro, dinheiro, dinheiro!”, como diria do Doutor Porkshop do Toy Story.

E como ficamos?

[encolhe os ombros em resignação, desembrulha a sua sandes mista sem manteiga e olha de modo vazio para o infinito. pondera as possibilidades do trânsito de final da tarde e toma uma decisão que será a mesma decisão que todos irão tomar. o fiambre parece ligeiramente fora de validade. continua a mastigar de modo mais intenso, porque sabe que vai ser um stress ficar preso no trânsito e chegar tarde à escola para levar os miúdos para casa. suspira. pensa que seria tudo mais fácil se tivessem já inventado portais de teletransportação. volta ao trabalho aceitando pacificamente as dores e o sofrimento da vida.]