Andava aí um filme de terror, que apareceu a voar baixinho por debaixo dos radares, a fazer furor nas salas. Sou daquelas pessoas que dá logo dinheiro a um gajo de aspecto drogado para apanhar o autocarro porque perdeu a carteira ou compra toneladas de produtos em esquemas de pirâmide, mas nisto dos filmes fico muito apreensivo. “Quem são estes agora para me convencerem que o filme é bom? Na volta é malta que acha que Inception é uma matrioska de conceitos, ideias ou situações em vez da criação de algo.” E quando finalmente decidi ir vê-lo ao cinema, depois deste processamento todo, já tinha saído de sala. Há 4 meses.
Black Phone é este filme que gerou um sururu baixinho, não estratosférico, mas o suficiente para o colocar nos topos das preferências dos buffs do terror. Fala-nos de um homem que rapta crianças, numa carrinha de roubar crianças, coloca-as na sua cave e mata-as passados uns dias. Uma dessas crianças, esta última que será responsável pelo previsível romper do ciclo, encontra um telefone na parede. Desligado, velho, inutilizado. Enfim, uma memória de outra vida daquela cave húmida, mal iluminada e decorada por um talhante com deficiências cognitivas. Mas esse telefone toca e dele vêm as vozes das crianças que morreram ali anteriormente. Discursos difusos, embrumados num transe meio esquecido, inebriadas pelo mastigar do além, lá vão aos poucos dando detalhes das suas mortes. Que isto é uma longa metragem, não são meia hora à Twilight Zone. E o jovem aproveita estas pistas, ora verdadeiras ora falsas, para se pôr na alheta e resolver o seu problema a tempo do campeonato nacional de Space Invaders. (esta parte é minha liberdade criativa)
O filme tem esta mistura de temas e tons, a dura realidade dos raptos de crianças com a junção de temas paranormais, dos mortos que falam com os vivos, e a questão tecnológica. Em vez de um tabuleiro ouija, uma possessão ou uma boneca assassina, é um telefone velho. E preto. Prático. Esta mistura é, diga-se, incomum. Tudo no cinema que é incomum e não é horrível ou aborrecido tende a ganhar o carimbo de “bom”.
Outro aspecto interessante, e com o qual me identifico, é a representação dos anos 80 como uma época com as dificuldades normais de qualquer época. Não é perfeita, as pessoas não vivem em êxtase de felicidade constante, as cores não cegam nem nos obrigam a meter óculos escuros. As pessoas têm dificuldades financeiros e emocionais, as casas são mal iluminadas, como eram na verdade, as luzes amarelonas e os castanhos e azuis sujos proeminentes. Havia violência, as crianças sofriam violência e não se podiam queixar. Ao chegar a casa ainda apanhavam, como era a realidade em muitas casas. Mesmo cá, neste ermo perdido da europa, abandonado aos cães e acabado de sair das trevas da opressão totalitária de uma ditadura que não estava do lado do homem comum. Portugal prestes a ser lavado, vestido com roupa de domingo e entrega ao ocidente capitalista para servir de gado.
Divago! O filme, esse, é bom. É de ver. Beijem as vossas crianças, os vossos pais, os vossos entes, que isto nunca se sabe quando será a última vez.
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